A redenção na bola

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Patrícia de Melo Moreira/AFP

Foi premonição. Em 1998, na tarde da inauguração da Expo, uma idosa, tez queimada de camponesa e pernas arqueadas pela idade, saiu célere do autocarro de matrícula de Badajoz que, pouco mais de duas horas antes, passara a fronteira. Saco na mão, com um farnel de sandes embrulhadas em papel de alumínio e garrafas de água, perguntou ao primeiro polícia que encontrou à entrada do recinto: “Espanha, onde está?”. Dezasseis anos depois a resposta foi ontem dada nas ruas da capital.

A pergunta de 98 não esteve fora de tom. Os espanhóis são assim. Viajam pelo Mundo com a bússola no ponto de partida. Diego Torres, colunista de futebol do El País, recordava ontem as suas andanças pelos torneios europeus. Mesmo nos lugares mais remotos, alguém conhecia um méson de um casal espanhol para matar saudades, de poucas horas, da tortilha de batata. Só um estômago nacionalista resiste, em Pequim ou Estocolmo, a um remake da mais célebre e difícil de confeccionar iguaria da gastronomia do lado.

Mas eles são assim. Os franceses não passam de uns vizinhos ruidosos do andar de cima. Os britânicos são filhos da… Grã-Bretanha. Os alemães são alemães. Os norte-americanos não passam de “gringos” de “western”. Dos portugueses há a incompreensibilidade da sua independência. Mariano Rajoy, o chefe do Governo de Madrid, desportista de sofá, madrilista convicto e comentador ocasional da Vuelta ciclista a Espanha, sempre balizou a identidade portuguesa a partir de 1640.

O espanhol comum não se aventura na História. Bebe da tradição do Império de Carlos V, onde o sol nunca se punha, e recreia-se neste apego. Contra todas as evidências e saberes. Ao arrepio da lógica. Em detrimento da globalização. Mas há um resultado compensador. Favorece uma inebriante auto-estima. Foi o conservador  ministro das Finanças Cristóbal Montoro que chamou “homens de negro” aos emissários da troika.  Não um sindicalista de mau humor. Ou um colunista esquerdista.

Contentes por existirem e terem chegado à final, colchoneros e merengues desembarcaram na cidade. O colorido das camisolas do Atlético e a abundância da sua presença dava a imagem de ruas pejadas por cogumelos, como os que ilustram os livros infantis. E para onde foi esta turbe? Olhou a bússola e, inevitavelmente, regressou a casa. El Corte Inglês estava repleto. No supermercado compravam cerveja, no restaurante despachavam paelhas, claro. E faziam uma das poucas concessões. Comiam bacalhau.

Tudo tem uma explicação. O de lá é mais fresco que salgado com apenas vestígios de cura. Sensaborão. Talvez por isto, ou pela tradicional hospitalidade lusa, a arrogância é evitada. Há, por vezes, certa displicência. Na esplanada de um bom restaurante, os pratos com casca de marisco, um homem de meia-idade acompanhado pelo filho com camisola do Real Madrid não quis dialogar. Respondeu com uma nuvem de fumo de charuto. A contra-resposta foi igual fumarada de cachimbo.

No futebol, como em tudo, há classes. Loquaz foi Damara, uma enfermeira de 29 anos, madrilista, que por 40 euros veio de autocarro para Lisboa sem bilhete para o estádio. Veio pelo ambiente. Trouxe o presunto de casa. Por cá comprou o pão e a cerveja. Entre pobres há reconhecimento. E risos.

Os mesmos de José e Sara, colchoneros. Ele 36 anos, ela 29. Vieram de Fuenlabrada, subúrbio de Madrid, para uma esplanada junto à igreja de São Sebastião. Um casal diferente. Não olharam para a bússola da marca que, mais que a bandeira ou o hino sem letra, simboliza a Espanha: El Corte Inglês está em todas as cidades do país, mesmo nos redutos do nacionalismo catalão ou basco. José explicou. Viveu na Índia dois anos. Passou por Brigton e esteve meses em Itália. Sabe que a terra é redonda, mas cada país é um beco por descobrir.

Como o futebol, com as mesmas leis em todo o lado, é diverso. Mas propicia o encanto de diálogos surpreendentes. António Pedro, 58 anos, passeava na Rua Augusta a sua camisola do Benfica. Sem complexos. Afirmação à espanhola. E a coisa resulta. Diego, 25 anos, um de seis amigos do Real Madrid, trocou ideias sobre a melhor táctica. Ouviu com apreço. Agradeceu e estava sóbrio.

Sem euforia, com o saber de muitos jogos e vida, Paco e Maria, um casal de Ourense, celebra em Lisboa o 35 º aniversário do casamento. De mão dada, vestidos à casal Inatel – fato de treino madrilista, sapatilhas e boné – têm três dias para o jogo, o passeio e o amor. Confessam a sua paixão. Têm ambos 60 anos, vida desafogada, dois bons filhos e uns netinhos de sonho. Tudo está planeado. Domingo em Sintra, depois Fátima, Coimbra e regresso à Galiza.

Conhecem Portugal e os portugueses. São cuidadosos nas palavras. Amáveis no trato. E deliciosos com o sotaque galego. Um abraço dele e um beijo dela selam uma conversa deliciosa. Perguntam pela crise. Interrogam sobre o desemprego. Estão interessados porque nos quieren, confessam.

Já vão longe os tempos retratados pelo poeta António Machado (1875-1939) de uma Castela imperial, centralista, arrogante “que desprecia quanto ignora” – que despreza quanto desconhece. Tudo pode acontecer na bola. Até a redenção.

 

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