Medeiros Ferreira, um protagonista subtil com um "sorriso extraordinário"

Benfiquista crítico, político irónico, académico despreocupado. Nasceu na Madeira, mas era açoriano, com certidão, e convicção. Sentia-se "cada vez mais de esquerda".

Foto
José Medeiros Ferreira tinha 72 anos Rui Soares

Foi ministro dos Negócios Estrangeiros por pouco mais de um ano, mas ainda o recordam como tal. Era um historiador que se sentia preparado para a acção, na política que o subaproveitou. Medeiros Ferreira morreu, ao 72 anos, na véspera da comemoração dos 40 anos da democracia que ajudou a fundar.

José Medeiros Ferreira nunca fugia ao assunto, incómodo, da sua sabática, forçada, na política. Numa das suas últimas entrevistas de fôlego, ao Expresso, tentou uma explicação: “É qualquer coisa no funcionamento do sistema político ou no sistema de blocagem das personalidades. Há aqui um lado subterrâneo na vida dos partidos...”

Se o conhecia, ao lado subterrâneo, nunca se deixou contaminar muito por ele. Foi, até, demasiado avesso aos percursos lineares, previsíveis, em que se sustentam as carreiras políticas, com a naturalidade de quem nasceu, há 72 anos, no Funchal, Madeira, mas tem escrito Ponta Delgada, Açores, na certidão de nascimento. E sem nenhuma falsa modéstia.

Em Lisboa, onde chegou em 1960, com 18 anos, depois de quatro dias de viagem marítima, a bordo do Cedros, cedo entraria nas mais restritas casas do poder.

Em 24 de Março de 62, já o temos em casa de Marcello Caetano, o Reitor da Universidade, figura influente do regime, a quem os estudantes tentam convencer. Estava em causa a comemoração do Dia do Estudante, autorizada por Caetano, proibida, subitamente, pelo Governo.

Hábil, “formalista”, como dizia de si próprio, Medeiros ajuda a abrir uma brecha no regime, com a demissão do reitor, em protesto contra as cargas policias que o desautorizavam junto dos estudantes.

Acabaria preso, como os outros. Filho de um sargento da guarda fiscal e de uma doméstica, não tinha pergaminhos oposicionistas na família. Ele próprio, ao fim de dois anos em Lisboa, já os tem, de sobra. Certa vez, fugindo da PIDE, acaba refugiado, com Eurico de Figueiredo, numa casa que pensavam segura mas era, afinal, de Piteira Santos, também ele em fuga desde o Golpe de Beja.

É escolhido pelos estudantes para presidir à Reunião Inter-Associações, sucedendo a Jorge Sampaio. Por pouco tempo, contudo. A PIDE prende-o e, desta vez, é torturado e forçado a passar três dias sem dormir.

Em 1968 deserta e parte para Genebra, na Suiça. Desta vez tem à sua espera uma amiga, Ana Benavente, também ela refugiada em Genebra. Ana chegara a Letras dois anos depois e recorda, hoje, que “o Zé Medeiros” foi a primeira pessoa que conheceu na faculdade. “Quando cheguei ao bar perguntei qual era a mesa onde se sentavam os membros da pró-associação de estudantes. Foi ao Zé que me dirigi para lhe dizer que contassem comigo. Ele recebeu-me com aquele seu sorriso extraordinário…”

Na Suiça, Medeiros pediu o estatuto de exilado político. E foi o primeiro dos oposicionistas portugueses a consegui-lo. O pequeno grupo de Genebra – que integrava também António Barreto, Valentim Alexandre e Eurico Figueiredo – vai criar uma revista, a Polémica. Para o historiador João Bonifácio Serra, essa terá sido a “primeira tentativa de mobilizar a análise histórica e social para a compreensão da sociedade portuguesa, das suas tensões e bloqueios, como condição para desenhar a própria acção política”.

Mário Soares visita-o, com regularidade. Nesta altura, os caminhos da Polémica levam-no a identificar um sector onde vale a pena intervir, politicamente: as Forças Armadas. E um tópico para unir os que combatiam pela democracia. No III Congresso da Oposição Democrática em Aveiro, em 1973, a sua comunicação escrita (porque estava exilado na Suiça) refere pela primeira vez, os célebres “3 Ds” – democracia, descolonização e desenvolvimento - que viriam a unir o Movimento das Forças Armadas, em 25 de Abril de 1974.

Depois da revolução, adere ao PS e assume os dois únicos cargos governativos da sua vida: secretário de Estado, primeiro, no Executivo provisório liderado por Pinheiro de Azevedo, e ministro dos Negócios Estrangeiros, em 1976. Foi ele que formalizou, em Março de 1977, o pedido de adesão de Portugal à então CEE.

Próximo de Eanes e de Soares, será colocado, como dizia, numa “posição dilemática”. Quando o Presidente e o primeiro-ministro disputam poder, Medeiros sai do Governo, e do PS. Com António Barreto, e outros, como Francisco Sousa Tavares, funda o Movimento dos Reformadores, e faz um acordo para integrar as listas da AD de Sá Carneiro.

Em 1985 é um dos fundadores do PRD (17,8% nas legislativas) que representará, em São Bento e no Parlamento Europeu. Opôs-se à moção de censura que derrubou o Governo, minoritário, de Cavaco Silva, e acaba por deixar o PRD.

Nos anos 80, para se sentir “livre”, termina o doutoramento (licenciara-se em Genebra) e inicia uma carreira académica em História Contemporânea, especializando-se no estudo das relações diplomáticas e política externa. Fazia sempre questão de distinguir uma da outra, e lamentava que Portugal não tivesse a segunda, “há muito tempo”.

Voltou ao Parlamento depois de ter regressado ao PS, com o seu velho amigo Jorge Sampaio. Com a chegada ao poder de José Sócrates, de quem sempre foi crítico, foi afastado das listas. Com Ana Benavente: “Eramos os dois críticos e saímos os dois na mesma altura.”

As Presidenciais de 2006 foram o seu regresso, convicto, às origens: o apoio a Mário Soares. Mas queria que o candidato fosse, como ele gostava de ser, autónomo do partido. A derrota foi pesada.

Desde então, a política foi sendo um assunto cada vez mais exterior. Uma acção que via, comentava – vivia, apaixonadamente – mas na qual não tinha, pela primeira vez, um papel. A sua ironia e subtileza estavam guardadas para as crónicas na imprensa e para os comentários televisivos.

Nos últimos dois anos, já doente, recebeu várias homenagens. Um livro de textos de ex-alunos e colegas da Universidade, uma festa de aniversários pelos seus 70 anos, e um muito aguardado encontro por ocasião dos 50 anos da crise de 1962.

Era casado com a sua colega de Letras, e de exílio em Genebra, Maria Emília Brederode Santos (uma das autoras da versão portuguesa de Rua Sésamo) e tem um filho, Miguel, com 40 anos.

O funeral realiza-se hoje, às 15 horas, no cemitério dos Prazeres, em Lisboa.

Sugerir correcção
Comentar