Católicos criticam "prepotência" da ONU por exigir justiça para os crimes pedófilos na Igreja

Painel internacional censura "código de silêncio" da Santa Sé relativamente aos abusos sexuais por membros da Igreja Católica e contesta ensinamentos relativos ao aborto e à homossexualidade.

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A comissão da ONU concluiu que a Igreja Católica “nunca reconheceu a extensão dos crimes cometidos” pelos seus próprios membro Peter Muhly/AFP

Um relatório da comissão de direitos das crianças da Organização das Nações Unidas sobre as responsabilidades do Vaticano no encobrimento de casos de abusos sexuais por membros da Igreja Católica provocou reacções muito diferentes das associações de vítimas e de organizações católicas, que respectivamente elogiaram e censuraram o documento ontem divulgado.

“Este relatório dá esperança a milhares de vítimas em todo o mundo. Esperamos que todos os chefes de Estado do planeta o leiam e ajam em conformidade: este é um apelo à acção, não dos dirigentes da Igreja, que negaram estes crimes durante anos, mas das autoridades civis que podem e devem abrir inquéritos ”, pronunciou-se a presidente da Rede de Sobreviventes de Abusos de Padres (SNAP), Barbara Blaine.

Já Austen Ivereigh, o coordenador da organização Vozes Católicas, lamentou a “chocante manifestação de ignorância e prepotência” revelada pelos relatores das Nações Unidas, que segundo critica não atenderam às “particularidades” da Santa Sé, tratando o Vaticano como se fosse uma espécie de "quartel-general de uma corporação multinacional”.

O relatório é arrasador para o Vaticano, e vem reforçar a pressão sobre a Igreja e o Papa Francisco, que classificou os escândalos de abusos sexuais como a “vergonha da Igreja” e no final do ano passado avançou com uma comissão interna para investigar todas as alegações de pedofilia e outros crimes alegadamente perpetrados por membros da Igreja, bem como a resposta das hierarquias a todas as queixas apresentadas.

A comissão da ONU concluiu que a Igreja Católica “nunca reconheceu a extensão dos crimes cometidos” pelos seus próprios membros nem “tomou as medidas necessárias para resolver os casos de abuso sexual de menores e proteger as crianças”, tendo pelo contrário “adoptado políticas e acções e levaram à continuidade desses abusos e à impunidade dos abusadores” – pelo que exigiu ao Vaticano a retirada de funções e a denúncia de todos os suspeitos de abusos sexuais, e “todos aqueles que ajudaram a esconder esses crimes”, para que possam ser investigados e responder pelos seus actos perante a justiça.

Como um dos subscritores da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, ratificado em 1990, o Vaticano está aberto ao escrutínio da respectiva comissão, com sede na Suíça. Na 65ª sessão desde o arranque da actividade do comité, foram avaliados os casos da Alemanha, Congo, Iémen, Portugal, Rússia e Vaticano: de acordo com o arcebispo Silvano Tomasi, observador permanente da Santa Sé nas Nações Unidas em Genebra, o Vaticano deu conta das “medidas concretas” levadas a cabo pela Cidade do Vaticano e a Igreja Católica para a protecção de menores.

Em Dezembro passado, representantes da hierarquia da Igreja foram chamados pelos membros do comité – um painel internacional de 18 membros composto por académicos, sociólogos, juristas e especialistas em direitos humanos – para testemunhar sobre os casos de pedofilia e abusos sexuais. O “interrogatório” prolongou-se durante o dia todo, e esta quarta-feria. numa breve reacção, o Vaticano lamentava que o comité “simplesmente tenha preferido não levar em conta as respostas detalhadas” fornecidas durante a sessão.

“A Santa Sé consistentemente colocou a preservação da reputação da Igreja e a protecção dos abusadores acima dos superiores interesses das crianças”, lamentou o comité, censurando o “código de silêncio” adoptado pela Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano. Esse “silêncio”, prossegue o documento, foi imposto tanto aos indivíduos (incluindo freiras e padres) que avançaram com denúncias de crimes sexuais no seio da Igreja – e que segundo aponta o relatório foram “ostracizados, despromovidos ou despedidos” – como às vítimas, cuja compensação estava dependente da assinatura de cláusulas de confidencialidade.

Legalmente, a Santa Sé não pode responder pelos casos específicos que chegaram a tribunal – é a hierarquia da Igreja em cada país que intervém nesses. Mas a agência da ONU argumenta que o Vaticano deve assumir uma “responsabilidade moral” pela conduta criminosa dos seus membros, uma vez que “todos os subordinados das ordens religiosas católicas estão obrigados a obedecer ao Papa de acordo com os Cânones 331 e 590”.

O relatório enumera uma série de medidas para combater os abusos sexuais (por exemplo a o estabelecimento de regras para a denúncia às autoridades). As recomendações do painel não são vinculativas e a comissão não dispõe de nenhum instrumento de vigilância ou verificação para além da cooperação dos Estados: neste caso, o Vaticano foi instado a comunicar os "progressos" alcançados em 2017.

No entanto, os relatores da ONU referiram-se a outras matérias que, na sua opinião, põem em causa os direitos das crianças e que têm a ver com os princípios do direito canónico que proíbem o aborto ou a homossexualidade. O objectivo, para os especialistas, é permitir o acesso das crianças e jovens católicos à educação sexual ou à contracepção, por exemplo, ou combater a discriminação contra homossexuais.

Numa análise ao relatório ontem divulgado, John Allen Jr, antigo correspondente no Vaticano e editor do Boston Globe, alerta para a “elevada probabilidade de que os tiros do painel das Nações Unidas façam ricochete, por misturarem a causa da protecção dos menores com as guerras culturais relativas aos costumes sexuais”. As críticas vertidas no documento aos ensinamentos da Igreja relativos ao aborto ou à homossexualidade, considera, “podem muito bem fortalecer aqueles que ainda vivem em negação dos escândalos sexuais da Igreja, que poderão desvalorizar o relatório à luz da crítica secular com motivações políticas”.

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