O histórico Cinema Londres, em Lisboa, vai transformar-se numa loja de produtos chineses

Os proprietários do imóvel na Avenida de Roma confirmam o negócio. Já há dois abaixo-assinados, de um movimento de comerciantes da zona e de uma associação cívica, defendendo que o espaço deve continuar ao serviço da cultura.

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O antigo Cinema Londres, na Avenida de Roma, em Lisboa, vai ser transformado numa loja de produtos chineses. O movimento de comerciantes da zona e o núcleo lisboeta da associação Mais Democracia não se conformam com a decisão e defendem que aquela que em 1972 foi apresentada pela comunicação social como “a mais luxuosa sala-estúdio de Lisboa” deve ser convertida num pólo cultural.

O cinema fechou as portas em Fevereiro de 2013, depois de a Socorama, que era à data o segundo maior exibidor de cinema em Portugal, ter entrado em processo de insolvência. Na altura a empresa chegou a dizer que o encerramento não era definitivo mas, cerca de um ano depois, os proprietários do espaço confirmaram ao PÚBLICO que já foi celebrado "um contrato de arrendamento comercial com uma Sociedade de Direito Português, mas com sócios de origem chinesa".

Um dos co-proprietários do Londres e representante dos restantes cinco, que pede para não ser identificado, explica que ao longo dos últimos meses "foram efectuadas diversas diligências e negociações no sentido de  arrendar de novo aquela fracção para actividade análoga à anterior, embora com características mais abrangentes". "Infelizmente, não foi possível concretizar nenhuma dessas hipóteses", afirma em esclarecimentos enviados por escrito, nos quais acrescenta que o referido contrato de arrendamento foi celebrado "à falta de outras alternativas".

Os donos do antigo cinema sublinham que "as instalações e os equipamentos estavam em estado de acentuada degradação". Situação que, acrescentam, se acentuou quando, "por decisão do Administrador Judicial de Insolvência, foi removido e vendido todo o recheio relativo ao cinema propriamente dito (cadeiras, écrans, projectores, instalação eléctrica, etc) e ao restaurante/snack-bar". Nessa altura, concluem, as instalações "ficaram completamente 'arrasadas'".

O Movimento de Comerciantes da Avenida Guerra Junqueiro, Praça de Londres e Avenida de Roma não se conforma com a decisão. Em meados de Dezembro, alguns dos seus elementos tiveram uma reunião com o representante dos proprietários do Londres, com o objectivo de encontrar uma solução que permitisse que o espaço continuasse a ter uma função cultural.

Mas os resultados desse encontro não foram animadores. “Foi-nos dito que não havia nada a fazer, que já se tinham comprometido”, explica o porta-voz do movimento. O empresário Carlos Moura-Carvalho critica o facto de este processo ter sido conduzido de forma “sigilosa”, não tendo havido qualquer publicitação de que o imóvel na Avenida de Roma estava para arrendar.

"Acordaram tarde", reage o representante dos proprietários do Londres, lembrando que passaram dez meses entre o encerramento do cinema e o pedido de reunião por parte dos comerciantes. "A ideia, que eu bem compreendia, morreu à nascença, em virtude da inércia revelada", afirma esta fonte, que questiona se os lojistas teriam "capacidade para suportarem o elevadíssimo custo das obras de recuperação do espaço e o encargo com a renda pretendida".

Apesar de a abertura de uma loja de produtos chineses lhes ter sido apresentada como “um facto consumado”, o Movimento de Comerciantes da Avenida Guerra Junqueiro, Praça de Londres e Avenida de Roma não baixou os braços e lançou a petição “O nosso bairro precisa de um polo cultural”, que pode ser assinada num conjunto de estabelecimentos comerciais da zona.

Nessa petição diz-se que “existe vontade e disponibilidade por parte de diversas entidades públicas e privadas, moradores e comerciantes, para encontrar uma solução conjunta que, em paralelo com uma opção comercial, garanta a manutenção de um polo cultural na freguesia do Areeiro”. Os autores do documento, que querem ver o assunto discutido na Assembleia Municipal de Lisboa, apontam como hipótese “a instalação de um cine clube, de uma livraria e de um ponto cultural de debate e participação”.  


Também o MaisLisboa, o núcleo lisboeta da associação cívica Mais Democracia, lançou, mas na Internet, um abaixo-assinado intitulado “Não queremos uma Loja dos 300 no Cinema Londres”. Ao fim da tarde de quarta-feira o documento, no qual se diz que a abertura desse negócio vai contribuir para a “degradação de uma das zonas comerciais mais diversificadas e históricas da cidade”, tinha cerca de 330 assinaturas.

“Naquela zona temos perdido, nos últimos anos, todos os cinemas de qualidade. Primeiro o Quarteto, depois o King e agora o Londres. Só restam os cinemas pipoqueiros”, constata Rui Martins, autor do abaixo-assinado. A proposta do MaisLisboa, explica, é que o antigo cinema na Avenida de Roma seja explorado por “uma cooperativa”, formada por particulares e por entidades públicas, como “centro comunitário”, onde se realizem eventos culturais e onde associações sem sede possam desenvolver a sua actividade.  

Perdeu-se "a melhor sala-estúdio de Lisboa"

“O Londres foi a melhor sala-estúdio de Lisboa”, sintetiza a autora do livro Os Cinemas de Lisboa - Um fenómeno urbano do século XX. Margarida Acciaiuoli recorda que o espaço, inaugurado a 30 de Janeiro de 1972 com o filme Morrer de Amar, de André Cayatte, “foi pensado para ter três funções: ver cinema, jantar no snack-bar e conversar no Pub The Flag, que ficava ao lado”.

No livro, a professora catedrática do departamento de História da Arte da Universidade Nova de Lisboa sublinha que o Londres “afirmava-se como uma alternativa única no panorama dos cinemas da cidade”, tendo conseguido criar “um ambiente propício à apropriação dos filmes, permitindo que os espectadores permanecessem no local depois das sessões”.

“É extraordinário como conseguimos inventar o cinema, um equipamento que não existia noutros séculos, e depois desenvolvemo-lo, demolimo-lo e não fica nada para o século seguinte”, afirma Margarida Acciaiuoli. A professora diz que hoje em dia “as pessoas não vão ao cinema, vão a uma sala onde se passam filmes”. “Ir ao cinema não é como ir ao supermercado, é preciso tempo”, explica, enquadrando o fim do Cinema Londres naquilo que considera ser “uma regressão de civilização”.

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