Amesterdão, 2 de Maio de 1962: o dia que mostrou Eusébio ao mundo

O Pantera Negra festejou na Holanda o seu primeiro título europeu de clubes. (Texto originalmente publicado a 2 de Maio de 2012, por ocasião do 50.º aniversário da final.)

Foto
Uma imagem da final em que o Benfica venceu o Real Madrid por 5-3 DR

Diz a “lenda” que, depois da final de Amesterdão que consagrou o Benfica como bicampeão europeu, o treinador húngaro Bella Guttmann, em vésperas de abandonar os “encarnados”, lançou uma profecia maldita: “Nem daqui a 100 anos uma equipa portuguesa será bicampeã europeia e o Benfica jamais ganhará uma Taça dos Campeões sem mim.” A “maldição” persiste para os lados da Luz, mas há 50 anos ninguém a levou a sério. Os lisboetas ainda festejavam o fim do reinado europeu do Real Madrid e Eusébio desafiava o trono de Di Stéfano.

Um cenário bastante improvável nos primeiros minutos da final de 2 de Maio de 1962, quando, aos 23’, Puskas bisou na partida e colocou os espanhóis a vencer por 2-0. Tudo pareceu então perdido, para desilusão dos milhões de portugueses pregados aos transístores e (ainda escassos) ecrãs de televisão espalhados pelo país.

Mas a Europa haveria de testemunhar um dos feitos mais épicos da história do Benfica e do futebol português. Nos 45 minutos de jogo que se seguiram, os lisboetas renasceram e transformaram uma ameaça de humilhação numa vitória por 5-3. Eusébio carimbou a reviravolta com dois golos, a coroar uma exibição de grande nível, que marcava uma meteórica ascensão no futebol mundial.

Neste seu ano de estreia ao mais alto nível (jogara apenas duas partidas na temporada anterior), a “pérola negra” apontara cinco golos na Taça dos Campeões Europeus. Uma competição em que os “encarnados”, detentores do título, deixaram pelo caminho o Áustria Viena, Nuremberga e Tottenham, campeões austríaco, alemão e inglês.

Confirmou-se a final mais desejada, entre os dois colossos ibéricos, que tinham conquistado os seis anteriores troféus da competição: cinco pelo Real e um pelo Benfica. O acontecimento mobilizou em massa uma eufórica comunicação social portuguesa, que invadiu Amesterdão.

Silva Resende, futuro presidente da Federação Portuguesa de Futebol (1983-1989), resumia emotivamente nas páginas de A Bola o sentimento geral: “Se nos cingirmos ao mundo do futebol, se fecharmos os olhos às espantosas promessas da ciência e às graves sugestões do pensamento, não será já descabido topar neste Real-Benfica como um dos mais apaixonantes e históricos acontecimentos do nosso tempo.”

A bitola estava elevadíssima. No ano anterior, o prémio pela conquista da primeira Taça dos Campeões Europeus rendeu a cada jogador do Benfica 22 contos (110 euros), totalizando a campanha europeia 50 contos (250 euros). Desta vez a direcção “encarnada” prometia abrir um pouco mais os cordões à bolsa, pagando metade deste valor, 25 contos (125 euros), só pela conquista do título, a somar aos restantes 29 (145 euros) já amealhados nas anteriores eliminatórias. Mais tarde, Eusébio contextualizaria o desequilíbrio ibérico nas carteiras dos jogadores: “Cada jogador do Real Madrid receberia um prémio de jogo superior a todos os jogadores do Benfica juntos.”

Nada se reflectiu em campo. Com os 65 mil lugares do Olímpico de Amesterdão completamente esgotados, a partida esteve longe de ser qualificada “de alto risco” pelas autoridades locais. A violência numa festa do futebol parecia um cenário descabido, pelo menos, no início dos anos 60. Os adeptos das duas equipas foram misturados e concentrados na mesma bancada e, ao nível do relvado, quatro mulheres polícias foram suficientes para manter o respeito e impedir invasões de campo no decorrer da partida.

Dois golos do Real Madrid em 23’ traduziram uma superioridade incontestável da equipa “merengue” na primeira fase do encontro. A festa espanhola já era feita nas bancadas, quando José Águas, na sequência de um livre, reduziu inesperadamente, aos 25’. O Benfica respirou, aproveitou para se reorganizar defensivamente e, aos 34’, igualou, por Cavém. Um hat-trick de Puskas, aos 38’, acabou por levar os madridistas em vantagem para o intervalo.

Nos balneários, os jogadores portugueses eram aguardados por um Guttmann estranhamente satisfeito e confiante, como relembraria depois Eusébio: “Disse-nos que íamos ganhar, que o Real Madrid estava extremamente cansado e que iríamos fazer golos.” Assim foi. Evidenciando uma maior frescura física, o Benfica avançou para cima do adversário. Cinco minutos após o reatamento, um tiro de Coluna, de 30 metros, restabeleceu a igualdade. Aos 62’, Eusébio materializava a sua arte em golos.

Depois de uma arrancada desde o seu meio-campo, só travada em falta na área do Real por Di Stéfano, o próprio Pantera Negra apontou a grande penalidade e colocou os lisboetas em vantagem pela primeira vez no encontro. E seis minutos depois, na sequência de um livre, Eusébio voltou a marcar, com um remate fulminante. Para alguns observadores, esta final simbolizaria a queda de Di Stéfano e a ascensão de Eusébio ao Olimpo do futebol europeu.

A festa portuguesa começava. “Tenho ainda nos olhos a multidão de portugueses que nunca descreu das nossas possibilidades e entrou no campo com o seu brado de incitamento, dísticos e bandeiras; tenho ainda nos ouvidos o seu coro profundo e vibrante, entoando A Portuguesa, em uníssono com a banda militar; tenho ainda na alma a imensa vibração do público holandês, que se rendeu ao campeão europeu com expressões de assombro, e a grata imagem desses muitos espanhóis que aceitaram sem azedume o curso dos acontecimentos, depois de passarem do delírio à prostração”, reviveria Silva Resente, no jornal A Bola.

No relvado, Eusébio chorava emocionado; no banco Bella Guttmann já pensava no futuro. Com alguma imodéstia garantiria depois que, “se treinasse o Real, o Benfica tinha perdido”. Uma das muitas tiradas pitorescas do técnico ao longo da sua carreira. Entre as mais memoráveis, destaca-se aquela que marcou a sua conferência de imprensa de despedida do Milan, em Fevereiro de 1955: “Fui demitido, mesmo não sendo um criminoso nem um homossexual. Adeus.”

Em Portugal, deixará para sempre uma maldição com o seu nome, apesar de a ter reformulado posteriormente, com tons menos dramáticos: “Nem daqui a 100 anos um clube português volta a ganhar duas vezes seguidas a Taça dos Campeões.”

A verdade é que a “maldição” de Guttmann afectou também, em sentido inverso, o treinador húngaro. Confirmará a sua saída do Benfica no final de Junho de 1962 (será rendido pelo chileno Fernando Riera), para rumar aos paraguaios do Peñarol, mas nunca mais atingirá os patamares de 1961 e 1962. Terminará a sua carreira, no final da temporada de 1973-1974, ao serviço do FC Porto (marcada pela morte do médio Pavão em campo).

O Benfica, entretanto, foi confirmando a profecia do húngaro, apesar de não lhe terem faltado oportunidades para contrariar a sua primeira versão. Logo na temporada seguinte à saída de Guttmann, perdeu a final da Taça dos Campeões Europeus frente ao Milan (2-1). O primeiro de cinco insucessos. Voltaria a perder as finais de 1964-65, com o Inter de Milão (1-0), de 1967-68, com o Manchester United (4-1), de 1987-88, com o PSV (0-0, 6-5 na decisão por penáltis) e de 1989-90, de novo com o AC Milan (1-0). Esta última disputada em Viena, cidade onde Guttmann fora enterrado nove anos antes.
 
 

Sugerir correcção
Comentar