Fábulas de um futuro distante: o regresso ao Instituto

Como deveria ser o regresso ao lugar de origem de um investigador depois de exercer funções públicas.

Já lá iam quatro anos desde a última vez que chegara de bicicleta ao Instituto. Uma rotina matinal que agora retomava com gosto. Quatro anos – quem diria –, quatro longos anos em que aceitou assumir funções públicas na gestão da ciência do seu país. Uma decisão difícil mas ponderada, que entendeu como um novo desafio e um serviço cívico. Nunca antes tinha tido funções executivas na máquina do Estado. Era apenas um receptor de políticas e financiamentos e um colaborador pontual em painéis de especialistas da sua área de conhecimento. Foi caçado para tais funções depois de uma intervenção mais viva e mais comprometida numa das muitas auscultações temáticas à sociedade que antecedem as viragens de ciclo político.

 Em cima do selim, a derradeira subida para a porta do Instituto parecia-lhe mais íngreme. Os anos e a falta de exercício rotineiro pesavam-lhe nos joelhos, mas a excitação deste primeiro dia era maior. Por decisão sua, tinha empacotado todas as coisas do gabinete de que não ia provavelmente necessitar durante as funções que exerceria, libertando espaço vital para que outro se pudesse sentar e ter uma mesa enquanto estivesse por fora. Agora, era o tempo de abrir as caixas e voltar, sentar-se de novo na cadeira que um professor jubilado lhe oferecera quando decidira desmantelar o seu gabinete, e olhar para o futuro que agora começava.

Há quatro anos que não entrava no Instituto, a não ser para a festa de Natal. Fez disso ponto assente, apesar de todos os convites pessoais e oficiais que sempre recebeu. Tão pouco opinou sobre as escolhas de quem agora dirigia a casa. Esse era outro dos desafios que queria superar: o de saber que, por muito essencial que fosse, não era insubstituível. Ninguém é insubstituível no trabalho, se as instituições forem bem construídas, e se assim não fosse naquele caso, a responsabilidade era sobretudo sua, que tinha liderado os destinos do Instituto por dois mandatos, mesmo antes de sair.

Soube-lhe bem voltar a entrar no laboratório. Os anos tinham passado por todos e tinha particular gosto na evolução dos jovens que ajudara a formar. Alguns eram já chefes de projectos, agora verdadeiros pares, esgrimindo argumentos científicos sem medo de desafiar as ideias de outrora ou qualquer status quo. Eram membros de pleno direito daquela casa, tal como ele passara a ser há muitos anos. Naquele momento misturavam-se os sentimentos de pena por não ter acompanhado de perto essa transição dos jovens, e de orgulho por se ter batido para que o sistema científico do seu país pudesse absorver a grande maioria do capital humano formado, mercê de um esforço de investimento colectivo que sairia gorado se todos se fossem embora, como acontecia por outras partes.

À tarde foi convidado pelos colegas da actual direcção para participar na sua reunião semanal. Aceitou por delicadeza e curiosidade. Constatou que tudo seguia a bom ritmo, com uma linha estratégica que não era a sua, mas na qual via muitas virtudes, e que sobretudo tinha feito progredir o Instituto na sua ausência. Pediram-lhe que voltasse à direcção, que a sua contribuição e conhecimentos de como funciona o sistema científico eram uma mais-valia que não podia ser desperdiçada. Declinou amavelmente, mantendo-se disponível para assessorar a actual direcção no que fosse útil.

Agora queria dedicar todo o tempo possível a actualizar-se na sua área do conhecimento, e a retomar as suas actividades de investigação. Os projectos que liderava não tinham parado, pois endossara-os a outros colegas da equipa. A legislação que fizera aprovar sobre o limite de cinco anos de reserva de propriedade intelectual dos dados científicos obtidos com recurso a financiamento público estava em vigor há já três anos. Findo este prazo, contado desde o final oficial de cada projecto, os dados eram obrigatoriamente públicos e disponibilizados pelas instituições que tinham obtido o financiamento, sob pena de não poderem concorrer a mais nenhum concurso. Era a doer, até para ele que tinha estado fora quatro anos, mas não estava arrependido de não ter criado excepções.

De volta à sua mesa, abriu mais uma caixa dos seus pertences. Sobressaiu um papel escrito por si à mão, com a nota de intervenção no fórum sobre ciência em que fora caçado para as funções públicas. Releu-a com atenção e logo concluiu que não a poderia fazer agora. Não porque não concordasse com o que lá estava, mas porque era outra pessoa em termos profissionais. Sabia demasiado bem como o sistema funcionava e isso era um entrave fatal à implementação de mudanças estruturantes. Neste primeiro dia de regresso ao Instituto sabia já que era ali que queria estar por muito tempo. O seu serviço cívico estava concluído.

Biólogo
 
 

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