Como país, Detroit não seria um Estado falhado mas quase

A polícia da cidade não detém o uso exclusivo da força. Falta de segurança e pobreza crescente são exemplos de factores que aproximam a cidade do Michigan de países com um Estado disfuncional.

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Mural de Diego Rivera no museu Detroit Institut of Arts Rebecca Cook/Reuters

É provavelmente a cidade mais disfuncional dos Estados Unidos, escreve a Foreign Policy sobre Detroit. E foi a maior cidade do país e a mais simbólica a declarar falência, na passada sexta-feira. Mas não foi a única.

A decisão de declarar Detroit na bancarrota foi apresentada por Kevyn Orr, o gestor chamado para um plano de emergência da cidade, e Dave Bing, governador do estado do Michigan e do Partido Republicano, como a única via para salvar a cidade outrora próspera e cuja ascensão assentou muito na indústria automóvel e nos Três Grandes (como eram conhecidos): General Motors, Chrysler e Ford.

Antes dela, já 36 municípios tinham declarado falência, desde 2010 quando o ritmo destes casos disparou, e depois de 54 municípios o terem feito entre 1970 e 2009, lembra o principal jornal local The Detroit News.

A declaração de falência, se confirmada pelo juiz, será a melhor oportunidade para a cidade retomar o fôlego perdido com a crise económica e o declínio do sector automóvel, um regime insustentável de pensões numa cidade a perder a sua população e um conjunto de investimentos pouco planeados que não se focou nos serviços básicos, resume a imprensa. A Reuters fala em "pôr uma espécie de chão por baixo do colapso".

Num prazo entre 30 a 90 dias, um juiz federal decidirá se Detroit pode invocar falência, para renegociar pagamentos e dívidas, de acordo com o que está previsto no capítulo 9, secção 11 do Código de Bancarrota dos Estados Unidos.

Detroit como um país
As perguntas são várias. E muitas delas dizem respeito aos pagamentos de pensões a pesoas que descontaram toda a vida activa. Mas outras começam a surgir, como a da Foreign Policy, que questiona: “Se Detroit fosse um país, seria um Estado falhado?”. A revista pediu ao Fund for Peace, organização que todos os anos estabelece o Índice dos Estados falhados, para aplicar os mesmos indicadores e metodologia à cidade que acumulou uma dívida de mais de 15 mil milhões de dólares (cerca de 12 mil milhões de euros). E tratar os dados como se Detroit fosse um país.

A Cidade do Automóvel, como foi conhecida, não seria um Estado falhado, mas quase, agora que o seu rendimento por habitante desceu aos 15 dólares (cerca de 12 euros), quando no resto do estado do Michigan é de 25 dólares. A pobreza e o seu declínio económico exercem fortes pressões e suscitam muitas dúvidas de que o Estado esteja a desempenhar o seu papel perante os cidadãos, considera a Fund for Peace.

Fundada em 1701, a cidade cresceu até aos anos 1950. Mas muito mudou desde esses tempos áureos vividos pelos seus 1,8 milhões de habitantes que hoje são apenas 700 mil pessoas. A indústria – e em grande parte a automóvel – criava 296 mil postos de trabalho há 60 anos. Hoje cria 27 mil. O desemprego chega aos 16%, mais do dobro da taxa nacional de 7,6%.

Muitas pessoas deixaram a cidade, que também foi perdendo postos de trabalho, e serviços tido como garantidos como as ambulâncias (cujo número caiu para um terço daquilo que era) ou a iluminação nas ruas que deixou de existir em quase metade da cidade. A polícia não consegue dar resposta em situações de emergência, 70 mil casas foram abandonadas e bairros inteiros estão vazios, descreve a Reuters.

Cidade na borderline
Ponderada a média entre os indicadores que se aplicam a uma cidade como Detroit – como a fuga de cérebros e saída de pessoas, a pobreza e a segurança, a Fund for Peace conclui que, se fosse um país, Detroit estaria na borderline, categoria imediatamente colada à de um Estado falhado. Mas não seria um Estado falhado, porque Detroit continua a garantir no essencial os serviços públicos, como a rede sanitária e o ensino público, embora abaixo da média dos Estados Unidos, e com críticas à fraca qualidade.

No geral, como país, e feitas as contas, Detroit estaria num nível de 59,5 (quanto maior o indicador, pior a situação) e isso significa que estaria ligeiramente melhor que o Brasil (62,1) ou o Kuwait (59,6), mas um pouco pior que a Mongólia (57,8), a Roménia (57,4) ou o Panamá (55,8) e muito longe de países como a Somália ou a República Democrática do Congo, ambos acima dos 110.

Os sinais de alerta são, entre outros, a fuga de cérebros e a pobreza, dois indicadores próximos dos verificados na Síria, e muito longe do confirmados no resto dos Estados Unidos; mas também e sobretudo o facto de Detroit não preencher o pressuposto de ter um sistema de segurança que garanta o monopólio do uso legítimo da força. Com a fraca resposta da polícia, a crescente violência armada de gangs e o surgimento espontâneo de grupos “policiais comunitários” de voluntários, Detroit aproxima-se em matéria de segurança, de países como o Ruanda (5,5) e da Serra Leoa (5,4). Regista um indicador de 5,5 quando o dos EUA é de 2,2.

Nos últimos anos, os planos de viabilização da indústria automóvel melhoraram as perspectivas da General Motors, Chrysler e Ford, mas não lhes devolveram a prosperidade dos anos 1950. Também por isso, têm-se multiplicado as iniciativas de associações comunitárias, que funcionam muito por voluntariado, e propõem “recuperar a cidade reinventando-a”, como escreve o jornal de Barcelona La Vanguardia. Para tal, ocupam espaços verdes ou deixados em ruinas com pequenas iniciativas empresariais ou agrícolas, que criam empregos e renovam a esperança.

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