Moustaki no CCB, em 2003: Paz mediterrânica

Republicação de crítica de música de 29 de Março de 2003, em Lisboa.

Foto
O cantor em 2005 no Olympia em Paris AFP

Um banco alto, duas violas, uma mesa com um copo de água e um par de óculos: foi este o cenário que serviu de base ao recital que Georges Moustaki deu no grande auditório do CCB, a 29 de Março de 2003, perante uma plateia pouco efusiva, com forte peso da classe média, que ali acorreu para ver e ouvir um dos sobreviventes da geração de ouro da canção francesa.

Moustaki entrou no palco suavemente, banhado por focos de luz tão claros quanto a roupa que vestia, aproximou-se do banco e de uma das violas (a espanhola, que a americana ficaria para mais tarde) e, sob os habituais aplausos de boas vindas, cantou “Je passe”, do seu mais recente álbum de estúdio, “Mediterranéen” (título ajustado, aliás, ao do espectáculo). Viriam depois as consagradas “Ma liberté”, “Il y avait un jardin” e “Sans la nommer”, onde Moustaki registou convicções políticas marcantes de uma época (“Bien-aimée ou mal aimée,/ Elle est fidèle/ On l’appelle/ Revolution permanente”). “De l’hiver”, uma canção nova, misturou melancolia com as sombras da morte, temas presentes noutros momentos da noite. E porque a morte tem outras causas para além da idade, ele recordou “Hiroshima” (“A Hiroshima ou plus loin/ Peut-être viendra-t-elle demain/ La paix”). Deu alguns passos atrás na história, para falar de Jesus da Galileia e do carpinteiro “Joseph” (recordando o dueto que no Brasil fizera com Nara Leão neste mesmo tema); da sua terra natal, em “Alexandrie” (“Tenho tanta saudade desta parte do mundo, tão maltratada, como é neste momento”, disse, numa directa analogia com a guerra em curso no Golfo Pérsico); ou para falar de um amigo grego, o compositor Manos Hadjidakis (a ascendência de Moustaki é também grega, embora tenha nascido no Egipto e fixado residência em França).

Falou de mais amigos e, a propósito deles, recordou outras canções: “Tango de demain” para Astor Piazzolla, “Bahia” e “Bye, bye Bahia” para Jorge Amado e Zélia Gatai; “Les eaux de Mars” para António Carlos Jobim; “Portugal” (versão do “Fado Tropical” de Chico Buarque, adaptada ao 25 Abril) para José Afonso. Com esta última arrancou a primeira tempestade de aplausos e alguns “bravos!” (houve quem gritasse “Abaixo a guerra!”). Moustaki repetiria o feito mais adiante, com a iconográfica “Le Métèque”. Pelo meio, ficariam mais alguns temas marcados por preocupações sociais, como “Déclaration” ou “Pornographie” (“Não é o sexo, são os discursos políticos que são piores que a pornografia”, afirmou). “La ligne droite”, “Votre fille a 20 ans”, “Ma solitude”, “Le temps de vivre” e “Sarah” completaram o recital, que fechou com “La marche de Sacco et Vanzetti”. Moustaki, que falou português sempre que pôde (ou “francogais”, como lhe chamou, pela mistura involuntária de idiomas, espanhol incluído), mostrou-se incansável, apesar do desgaste que 68 anos de vida têm provocado na sua capacidade vocal, acentuando-lhe a aspereza e reduzindo-lhe as nuances tímbricas. Mesmo assim, não deu mostras de cansaço e a voz recuperou bem da secura inicial, ao longo de quase duas horas de espectáculo. No fim, muitos e calorosos aplausos trouxeram-no de volta para um duplo “encore”: “Les amours finissent un jour” e “Kaimos”, palavra grega que quer dizer “saudade”, numa canção assinada por Dimitris Christodoulou e Mikis Theodorakis. Moustaki, esse, cumpriu-se no palco como prometera: um cidadão do Mediterrâneo aberto às culturas do mundo. Militante na poesia, na música e na paz.

Georges Moustaki. “O Cidadão do Mediterrâneo”
Lisboa, Grande Auditório do Centro Cultural de Belém
29 de Março de 2003, às 21h00
Sala com lotação esgotada

Sugerir correcção
Comentar