"Os cortes são parte de um ataque que está a ser feito à cidade"

Depoimentos que reagem à demissão em bloco da administração da Casa da Música: Rui Moreira,Rui Viera Nery, Risto Nieminen, António Pinho Vargas, Miguel Lobo Antunes, Pedro Amaral, Adolfo Luxúria Canibal, João Madureira

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Festival de Hip Hop Na Csa da Música Paulo Pimenta

"É a única instituição moderna dedicada à música que existe em Portugal"

Risto Nieminen, director do Serviço de Música da Fundação Gulbenkian>

Para mim, a Casa da Música é a única instituição moderna dedicada à música que existe em Portugal. E não conto aqui a Gulbenkian, que não é uma casa da música, é uma fundação com muitas actividades. 

Um milhão de euros é muito dinheiro, mas é pouco para justificar que se sacrifique uma instituição que não se promove apenas a si própria, mas também a música portuguesa, os seus compositores e executantes, e que vemn desenvolvendo um trabalho importantíssimo na educação musical das novas gerações. 

"É parte de um ataque que está a ser feito à cidade"
Rui Moreira, presidente da Associação Comercial do Porto<

"Foi sempre um projecto consensual em termos político-partidários"

Rui Viera Nery, musicólogo
A Casa da Música é uma instituição de capitais públicos, é uma responsabilidade do Estado, não é uma instituição privada à qual se dá uns subsídios. É um instrumento fundamental de prossecução da política cultural do Estado. E é importante lembrar que a Casa da Música foi sempre um projecto consensual em termos político-partidários, e seria muito mau quebrar agora esse consenso por causa de verbas que, em termos macroeconómicos, são irrelevantes. 
A Casa da Música é hoje, também, um organismo integrado numa rede internacional de primeira grandeza, algo que deu muito trabalho a construir e que pode ser facilmente destruído por um golpe súbito. Para manter a posição que alcançou, não pode estar sujeita a estas estratégias de stop and go. Se começar a cancelar compromissos assumidos." 


“É um perigo enorme cortar com a influência da Casa da Música”
João Madureira, compositor

“A Casa da Música teve um papel inestimável na descentralização da música em Portugal. Por acção do [director artístico] António Jorge Pacheco, a Casa da Música conseguiu uma programação alternativa muito voltada para a contemporaneidade, quer no que diz respeito à música contemporânea propriamente dita, quer no que diz respeito ao cruzamento com outras áreas, como o jazz, o rock e a música popular.

Conseguiu-se criar uma programação realmente a par do que se faz nos nossos dias na Europa. [O Remix Ensemble, o conjunto de música contemporânea da instituição], de que fizeram parte membros de outros grupos internacionais, permite que haja uma circulação efectiva da obra dos compositores portugueses. É um perigo enorme cortar com a influência da Casa da Música na sua cidade. A cultura é das áreas de maior rendimento na economia, pelo seu enorme retorno. Está muito ligada à questão do turismo, por exemplo. Uma cidade sem oferta cultural não chama turismo nenhum. Estamos todos a ganhar com o desenvolvimento conseguido com a Casa da Música.”

“A Casa da Música mudou o Porto”
Adolfo Luxúria Canibal, músico, vocalista dos Mão Morta

 “[A administração] não tinha outra hipótese senão demitir-se. É mais um passo titubeante deste governo. Anda para a direita e para a esquerda, não pensa as coisas com antecedência e faz dos outros gato-sapato.

A Capital Europeia da Cultura [em Guimarães] sofreu do mesmo defeito. Muita gente está por receber os pagamentos porque o Governo os secou e impediu que fossem feitos a tempo e horas. Isto de mudar uma decisão à última da hora quando as coisas estão programadas é típico.

É mais uma vez o disparate do 'em cima do joelho' a funcionar, porque o Governo não sabe o que quer e trabalha sem qualquer visão. São como putos amadores. Não sabem como se fazem as coisas, não sabem como se gere. Não sabem que na cultura as coisas têm que ser pensadas com antecedência, que os contratos têm que ser fechados com muitos meses de antecedência se não, nada acontece.

A Casa da Música mudou o Porto, veio dar mais oferta cultural e muita variedade, sobretudo na música erudita, com iniciativas e programações que criaram uma grande dinâmica à sua volta. Apanharam diversos públicos e criaram hábitos de consumo de música. Tal como aconteceu na Lisboa [Capital Europeia da Cultura] 1994, que mudou os hábitos de consumo da cidade”.

“No estrangeiro as pessoas falam da Casa da Música”
Pedro Amaral, compositor

“A demissão em bloco representa logo uma coisa muito significativa. Dada a moderação das pessoas que compõem o Conselho de Administração, é uma posição extremamente radical. Eles demitiram-se como solução última para um problema que não conseguiam resolver. São pessoas que tomaram esta atitude como o fim de uma linha. É preciso dizer que saímos de um secretário de Estado que, independentemente do valor que tenha como escritor, o que não está em causa, visivelmente não tinha habilidade política e teve dificuldade de diálogo com as instituições, nomeadamente não as recebendo.

Passou-se de um ministro com secretário de Estado, para apenas um secretário de Estado, o que diminuiu a estrutura em mais de 50 por cento, porque um ministro tem um peso que um secretário de Estado não tem. Portanto, o secretário de Estado não tinha mãos a medir. E passámos de uma situação de um secretário que não tinha mãos a medir, para um secretário de Estado que se vê na obrigação de impor um orçamento cego a muitas instituições.

Vemos que aspectos do dia-a-dia da nossa população estão degradar-se financeiramente todos os dias pelas razões que sabemos. E se nos dizem que é mais importante não descer reformas de 400 euros que apoiar uma instituição cultural, ficamos divididos e dizemos que não se cortem as prestações sociais. Mas têm que haver apesar de tudo focos de investimento e, no nosso país, dos poucos que funcionam — o D. Maria não dá lucro, o São Carlos não dá lucro — é a Casa da Música. Tem retorno dentro de portas e é também uma das montras da nossa cultura no estrangeiro. Quem trabalhe com orquestras e outras instituições no estrangeiro sabe que as pessoas falam da Casa da Música.

Depois de construir um equipamento como aquele vale a pena privar as pessoas do seu funcionamento? Porque a Casa da Música, assim, vai fechar, ou então passará a fazer coisas completamente diferentes, como festivais da canção, por exemplo.

Em termos de números reais, o investimento não é sequer uma gota de água no Orçamento de Estado. Será que a relação entre o que se poupa e o que se perde é aceitável para o Estado? Não tenho resposta para isso. E acho que o Estado também não tem. Este é um problema que já vem do ministro Teixeira dos Santos e que se acentuou com o do dr. Gaspar. É preciso cortar 30% e fazem-se cortes cegos.

Há um amadorismo tremendo na gestão da Secretaria de Estado da Cultura. O actual secretário de Estado tem uma preparação muito grande, que o anterior não tinha, na gestão das artes e eu tinha esperança que isso o impedisse de cortar cegamente. E este caso não é caso único. Estamos com um problema gravíssimo no Teatro de São Carlos. Há um anterior ministro das Finanças, que não vou identificar, que perguntou ao director artístico porque gastavam dinheiro a contratar cantores quando têm o coro. ‘Podiam pedir aos coristas para cantar.’ Qualquer pessoa que perceba minimamente de ópera sabe que isto é um absurdo. É de um total amadorismo.

Esta é uma questão de ponderação e razoabilidade. Entre o que se poupa e o que se perde, não há proporção. A única orquestra sinfónica pública que funciona com repertório sinfónico é a da Casa da Música. E o Remix Ensemble é o único conjunto ligada a uma instituição que é reconhecido lá fora. É um ícone da nossa exportação cultural.

Numa altura em que o governo fala tanto de exportação, a exportação da imagem e da nossa cultura deveria ser fundamental. E nós temos pouquíssimos instrumentos para a fazer. O Remix e a Casa da Música são dois desses veículos. Prescindir deles é um crime.”

“Extrema gravidade”
Miguel Lobo Antunes, administrador da Culturgest

A Casa da Música, por mérito das pessoas que a dirigem e das que  lá trabalham, tornou-se numa instituição de primeiro plano da vida cultural nacional, com repercussão internacional.

Uma excelente programação que abrange todas as músicas, grupos residentes de grande qualidade e já com consagração internacional, a contribuição dada ao desenvolvimento da música e dos músicos portugueses, uma grande adesão do público, um serviço educativo exemplar, justificam a enorme importância que a Casa da Música tem na nossa vida cultural.

A demissão da sua administração é muito preocupante. Neste país aflito, admitir que sucumbam instituições de refúgio e de alento, parece-me duma extrema gravidade.

“Paira sempre a ameaça de um novo corte”
António Pinho Vargas, compositor

“Estes cortes nos financiamentos administrativos culturais devem ser vistos em paralelo com outras acções deste Governo, como sejam o aumento brutal de impostos e o ataque a muitas funções sociais do Estado. É neste quadro que se pode e tem que se compreender a demissão do Conselho de Administração.

No entanto, gostaria de acrescentar que ao contrário do que se verifica noutras instituições culturais, o Conselho de Administração da Casa da Música tem um poder executivo muito reduzido. Tanto quanto sei reúne uma vez por mês e não é remunerado, sendo o exercício real da autoridade nessa instituição da responsabilidade do administrador-delegado, Nuno Azevedo, e do director artístico, António Jorge Pacheco.

Eu apoio naturalmente as razões que levam à demissão do Conselho de Administração, mas é importante ter em conta esta estrutura interna, que coloca o conselho de administração numa posição peculiar. Comparando com outras instituições como a Gulbenkian, como o CCB, como a Culturgest, o significado desta demissão é diferente daquilo que as pessoas podem imaginar. Normalmente associa-se conselho de administração com poder máximo e provavelmente é assim do ponto de vista simbólico, naturalmente que subscreve as acções que o administrador-delegado e o director artístico têm levado a cabo, mas, por outro lado, abre a porta a uma eventualmente fácil substituição por outros membros.

Não sei exactamente que consequência terá esta demissão, mas seguramente que será muito fácil para o Governo, para o secretário de Estado, para o primeiro-ministro, nomear um novo Conselho de Administração, dado que neste caso concreto se trata de um Conselho de Administração com mais funções simbólicas que reais no funcionamento da casa.

A questão que se coloca é saber qual a posição do administrador-delegado e do director artístico porque estes é que têm dirigido a instituição em termos práticos.

Estes cortes terão naturalmente como reflexo uma menor capacidade de acção, como teriam em qualquer outra instituição onde cortes da mesma natureza sejam aplicados. Um subfinanciamento traduz-se numa inferior capacidade de acção, num eventual retrocesso, coisa que julgo que se pôde verificar noutras instituições nos últimos tempos, como no Teatro de São Carlos, como no próprio Centro Cultural de Belém e mesmo na Culturgest. Todas essas instituições vivem neste momento debaixo de um enorme ponto de interrogação, de uma insegurança em relação às decisões que o Governo irá tomar relativamente ao orçamento previsto, pairando sempre a ameaça de um novo corte.”

Depoimentos recolhidos por Luís Miguel Queirós, Mário Lopes e Isabel Salema


 

 

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