Raul Gonzalez: "Insolvências vão continuar a aumentar sem precedentes"

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Rui Gaudêncio

Em vésperas de mudanças do código que rege as insolvências, e num momento em que estes processos continuam a disparar, o presidente da Associação Portuguesa de Administradores Judiciais (os profissionais nomeados para acompanhar estes casos) exige ao Governo que vá "mais além" nesta revisão. Mesmo com as alterações propostas, muitos problemas continuam por resolver.

O Estado mantém-se como o principal obstáculo à recuperação de empresas, as finanças continuam a responsabilizar os administradores pelas dívidas dos insolventes, há pagamentos em atraso e as nomeações aleatórias, que dão mais transparência aos processos, ainda não viram a luz do dia.

Que balanço faz das alterações que o Governo quer introduzir ao Código das Insolvências?

O Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE) tem neste momento sete anos e todos os intervenientes estavam a favor de uma alteração. A iniciativa é louvável e penso que está no bom caminho, mas deveria ir-se um pouco mais além.

Mais além em que aspecto?

Por um lado, tentar encontrar alterações que retirem trabalho aos tribunais e o passem para a esfera dos administradores de insolvência. Em segundo lugar, havia necessidade de clarificar alguns aspectos do CIRE.

A APAJ foi voz activa no processo?

Sim. Estivemos reunidos no início da semana passada. É muito positivo que quem trabalha com o código todos os dias tenha a possibilidade de transmitir os problemas que sente.

Depois desta reunião, as sugestões que referiu foram acatadas? Será apresentada agora a proposta final?

A DGPJ acatou as sugestões e está a trabalhar ainda na conclusão da revisão do código. Não sei se haverá mais reuniões porque o Governo precisa que este processo seja muito célere. Por isso, não sei vamos receber uma nova proposta para debater ou já a alteração final. Nem quando.

E que tarefas deveriam passar para os administradores de insolvência que hoje são feitas nos tribunais?

Há pelo menos dois momentos em que o administrador pode ser chamado a colaborar mais. Na fase de qualificação e graduação de créditos e no rateio, a seguir à liquidação dos bens do devedor.

O administrador já é actualmente obrigado por lei a apresentar uma relação dos créditos, que identifica o credor, a prioridade no pagamento das dívidas e o valor em causa. Mas essa tarefa é depois repetida pelo juiz. E assim bastaria apresentarmos a nossa proposta de graduação e, se o juiz concordar, ficaria homologada. Outro aspecto é o do rateio, o pagamento feito aos credores depois da liquidação e que é actualmente efectuado pela secretaria dos tribunais.

Num processo em que existam 500 reclamações de créditos, é uma tarefa árdua para os tribunais preencher folhas de cálculo, com a identificação de todos os credores, o respectivo valor reconhecido.

E esta transferência de funções implicaria um aumento na remuneração dos administradores de insolvência?

Não, de todo. Estas tarefas para um administrador de insolvência significam mais uma hora de trabalho. No tribunal, tem tudo de ser feito de raiz. É por isso que hoje estão por fazer muitos rateios no Tribunal do Comércio de Lisboa.

Estão neste momento para pagamento aos credores, por falta de rateio, vários milhões de euros. E um dos credores mais importantes é o Estado, que aceitaria de bom grado que este processo fosse mais célere.

Estas propostas também surgem porque os tribunais já não têm pessoas nem meios para lidar com tantas insolvências?

Os tribunais, e particularmente o do Comércio de Lisboa, estão quase esgotados. Todos temos de ter consciência disto e o Estado não vai admitir mais pessoas tão cedo. Por isso é que a nossa preocupação é encontrar mecanismos em que possamos ser parte da solução.

Na proposta do Governo, pretende-se que o incidente de qualificação, que avalia se houve ou não culpa nas insolvências, deixe de ser urgente e obrigatório. Concorda?

Retirar o carácter de urgência não faz muito sentido. Estaríamos a dessincronizar todas as fases do processo porque todas manteriam o carácter urgente à excepção do incidente de qualificação.

E o facto de deixar de ser obrigatório não pode aumentar os casos de má gestão sem punição?

A proposta é que passe a estar nas mãos do juiz, e não do administrador, a decisão se avança para a qualificação ou não.

E só se houver indícios de gestão culposa, o que muitas vezes não é evidente.

Isso é um problema e também o facto de os juízes não terem condições para fazer essas averiguações. Não me parece lógico que se mude este critério porque então a qualificação pára. E, por isso, a minha convicção é que isto não ver ser alterado. A qualificação vai manter-se obrigatória e com carácter de urgência.

Já disse que o número de insolvência deverá crescer para nove mil este ano. Esse aumento virá mais do lado das empresas ou dos particulares?

Vão ser eventualmente mais, sendo que vamos assistir a uma repartição igual das insolvências de empresas e de particulares. Aliás, corremos o risco de as insolvências singulares se sobreporem às colectivas já este ano porque a economia nacional está a atravessar um momento de grave crise.

E em 2012 as insolvências vão continuar a disparar?

O próximo ano ainda se vai sobrepor em número ao de 2011. As insolvências vão continuar a aumentar sem precedentes em Portugal. E haverá mais insolvência de particulares, que recorrem cada vez mais à insolvência porque começam a ser executados e a única forma de parar as execuções é através dos processos de insolvência, que lhes dão uma espécie de balão de oxigénio para se tentarem reorganizar.

Mas estes aumentos também não terão a ver com o facto de alguns credores utilizarem as insolvências para recuperar rapidamente as dívidas, mesmo que o devedor não esteja realmente em dificuldades?

É verdade. Aquilo que nos parece é que houve uma transferência da acção executiva para o processo de insolvência, porque há um número elevado de acções executivas por resolver. E sendo a insolvência um processo com carácter urgente, naturalmente vai acontecendo. A segunda razão é que é um processo muito mais eficaz porque ou o devedor tem dinheiro para pagar de imediato a dívida ou vai para a insolvência, o que não acontece na acção executiva.

E também há o facto da pressão que as insolvências provocam pela mediatização destes casos.

Exactamente. Acaba por pressionar os devedores, que não encontram outra solução que não pagar imediatamente as dívidas para evitar a má reputação.

Esta é apenas uma das distorções destes processos. Continua a haver falta de transparência nas nomeações dos administradores que acompanham estes processos?

As nomeações continuam a ser feitas pelos tribunais, sem critério definido porque tinha sido prometida, em 2004, a criação de um sistema de nomeações aleatórias que nunca foi adoptado. Há muitos administradores que hoje estão com demasiados processos. Somos 300 e, admitindo que haverá nove mil processos, daria 30 por pessoa. O problema é quando há administradores com 200 ou 300 processos cada um.

Esses administradores de insolvência estão a ser beneficiados?

Há tribunais que sucessivamente nomeiam os mesmos, mas o código hoje ainda permite que o requerente da insolvência sugira um nome. Mas têm de ser os tribunais a perceber se se justifica ou não nomear sucessivamente o mesmo administrador. Uma pessoa que em três meses é nomeada para 300 processos nem sequer consegue fazer todas as assembleias.

E ainda há o problema de não haver concursos para novas admissões, também desde 2004.

Um dos problemas que esta profissão enfrenta é que há muitos administradores que têm mais de 65 anos. Por isso, tem de haver exames de admissão, estágios e mais formação. E todos ganham porque o nosso trabalho tem de ser de excelência, sobretudo no momento que o país atravessa.

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