Quem tem medo da Baixa de Joanesburgo?

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A Baixa de Joanesburgo. Em algumas esquinas podia ser Nova Iorque ou Chicago Pedro Cunha

Há dez anos tinha fama de apocalipse. Agora há casas novas para alugar a 280 euros, e voltou a haver teatro, livrarias, artistas. Só faltam brancos a andar na rua. Um dia na Baixa de Joanesburgo, com Lucky & Rifumo.

Podia ser um western, mas é uma dupla de repórteres: Lucky & Rifumo.

Lucky, género lutador de sumo mas negro, tranças pelos ombros e pêra, a deslocar o ar quando passa, grande angular ao ombro. É o fotógrafo.

Rifumo, um palmo de gente, esguio e silencioso, de uma pequena tribo do Norte para o mundo que é Joanesburgo. É o redactor.

Trabalham ambos para o "Daily Sun", um tablóide dirigido à classe negra trabalhadora. Iam fazer parte da reportagem do P2, depois decidiram que o P2 também fazia parte da reportagem deles, e cá estamos todos, nesta manhã azul na Baixa de Joanesburgo.

No fim dos anos 90, tinha fama de apocalipse. Arranha-céus ao abandono, entre lixo, gangs, vagabundos e imigrantes de toda a África. Os brancos, que durante o apartheid tinham dominado estas ruas, levaram bancos, empresas, lojas, e instalaram-se nos subúrbios ricos do Norte da cidade.

E agora, em 2010, vésperas do Mundial? Definitivamente não é o apocalipse: milhares de negros a andar, a trabalhar, à espera de autocarro, a fazer compras. Mas os brancos em geral parecem não saber disso, porque não se vêem brancos. Passam lá em cima, naquele viaduto de onde se avista bem esta praça, e os pontinhos que são os negros a atravessá-la.

Mary Fitzgerald Square, um enorme quadrado de cimento aos pés da maior concentração de arranha-céus desta parte de África. O nome vem de uma sindicalista. No começo do século XX, os grevistas concentravam-se aqui, tal como em 2005, os concertos do Live 8 de Bob Geldof aconteceram aqui. Cabe mesmo muita gente em dias excepcionais. Mas vê-se que há um esforço para devolver a praça à vida de todos os dias.

À volta, árvores recém-plantadas junto a uma instalação de cabeças de madeira esculpida. À esquerda, a fachada com torreões bem pintados do Museu de África. Em frente, os murais pop da Rua Miriam Makeba. E na esquina, o lendário Market Theatre, onde nos anos 80 se dava cabo do apartheid no palco e na plateia.

Miriam Makeba já não canta, morreu há dois anos, mas museu e teatro estão a funcionar, e na rua pedonal entre eles há um mercado de rua.

A esta hora da manhã, os vendedores ainda montam as bancas: roupa, fruta, livros em segunda mão, artesanato feito de arame e missangas, mais adiante madeiras, couros.

- O negócio está muito baixo, mas com o Mundial vai ficar melhor - confia o sorridente Venie Hanac.

É zimbabweano, tem 42 anos, veio há seis para Joanesburgo tentar a sorte.

- Vivo ali por trás dos prédios - e aponta para os arranha-céus, aquilo a que as pessoas chamam CBD (Central Business District), o coração da Baixa. - Muita gente do Zimbabwe vive ali.

E aqui misturam-se com sul-africanos de raiz, como Isaac, 45 anos, agora sócio de Venie.

- Sim, o Mundial vai ser bom, mas vamos ver, por causa da nuvem do vulcão - diz ele. - Espero que não volte.

E a Baixa tem estado calma?

- De dia, sim - resume Venie. - Mas à noite há roubos, e às vezes há tiros.

Vida nova

Entretanto as bancas estão montadas, e passa um casal de turistas, os únicos brancos que veremos toda a manhã. Cruzam-se com um trabalhador de uniforme a dizer Newtown Improvement District. Em 1904 a Baixa de Joanesburgo estava a ser devastada pela peste bubónica e as autoridades decidiram queimar esta zona. Depois rebaptizaram-na Newtown.


Chega o director do Market Theatre, com quem temos encontro marcado. É Sibongiseni Mkhize, um zulu de KwaZulu Natal (costa Leste) que veio para Joanesburgo em 2004. Abre-nos as belas portas de madeira para o átrio do teatro, e à esquerda aparece o restaurante Gramadoelas, que nos anos 60 começou por ser um bar onde brancos e negros se pudessem cruzar, e hoje é um daqueles marcos na luta antiapartheid, cheios de fotografias e memorabilia. A esta hora está fechado, mesas postas, um antigo samovar.

- O edifício é de 1913, mas nessa altura era um mercado de frutas e vegetais - explica Sibongiseni, parando no átrio, para apontar os letreiros em afrikaans que anunciam vrugte (fruta).

Por baixo da bilheteira um aviso diz: "Nenhum produto em sacos será vendido sem cupão." As paredes estão cheias de fotografias de espectáculo, com actores brancos e negros.

E na sala principal, com palco negro e cadeiras vermelhas, conservaram-se os velhos letreiros atrás da plateia: Boland Fruit Distributors, Newtown Fruiterers.

- São parte da herança.

No palco andam técnicos a preparar o próximo espectáculo.

Sibongiseni passeia entre as cadeiras.

- Em 1976, quando o teatro foi criado, a ideia era ter um lugar onde pessoas de todas as raças se pudessem exprimir. Este foi o primeiro teatro fundado para um diálogo. Fazia-se abertamente, mas o comité de censura vigiava: não podem dizer isto ou aquilo.

E depois do apartheid, estas ruas foram ficando desertas.

- Quando cheguei, há seis anos, não era seguro vir à noite. Nem havia luz, as pessoas tinham medo de guiar até aqui. Agora, estamos a desenvolver toda a área. É seguro e as pessoas voltaram a sentir que a cultura faz parte da vida delas. Acho que há um futuro para Newtown. O nosso parque de estacionamento fica cheio.

Foi no Market Theatre, com uma nova criação da coreógrafa Constanza Macras, que o Instituto Goethe de Joanesburgo escolheu arrancar o seu festival agora em curso, Futebol e Cultura.

E de 15 de Junho até ao fim do Mundial, o Market Theatre tem o seu próprio calendário de concertos: jazz, afro pop, hip hop sul-africano, rock afrikaans e rock indie.

Dar em vez de receber

Quem quiser livros, está a um passeio da Xarra, uma livraria especializada em temas africanos, que também tem discos.


- Abrimos em 2005 - conta Felicity Azinui, uma das livreiras, saindo do balcão para mostrar as diferentes secções. - Encorajamos escritores locais. E durante o Mundial estamos a planear todos os fins-de-semana ter poetas e músicos, e vamos lançar um livro sobre futebol e política.

Em que é que o Mundial pode ajudar a Baixa a dar uma volta?

- Sabemos que haverá muita actividade aqui, isso poderá dar força à economia, e de alguma maneira toda a gente vai beneficiar. Para quem queira montar um pequeno negócio vai ser mais fácil. Agora temos de maximizar o momento, e depois temos de ver o que fazer a seguir. Tem de ser sustentável.

Felicity, 36 anos, formada em Direito, veio dos Camarões há três. É uma das novas imigrantes africanas para quem a África do Sul será o futuro, e já é o presente. Ela diz "nós".

- Há muitas coisas sobre a África do Sul que as pessoas não sabem, e poderão saber com esta oportunidade. Saberem que também temos coisas para oferecer, não só para receber. Parece que África é só uma grande floresta, mas se olharem bem para aqui, as pessoas estão a desenvolver coisas.

Dentro da livraria, não há muita gente para ver isso neste momento. Mas ainda falta tempo para o Mundial.

No alto do Carlton

Com Lucky ao volante, avançamos para o núcleo duro dos arranha-céus, o CBD, mas é difícil arranjar lugar, tão difícil como em qualquer Baixa movimentada.


- First National Bank... Supremo Tribunal - vai apontando Lucky. - A maior parte dos bancos mudou para os subúrbios ricos.

Em algumas esquinas podia ser Nova Iorque ou Chicago. Fachadas do começo do século misturadas com vidro e aço. Raparigas bem-vestidas nas passadeiras, a falar ao telemóvel, boina de peluche - mas nem um branco.

Lucky acaba por meter o carro no parque de estacionamento do Carlton e emergimos de escada rolante.

O Carlton ganhou fama como o prédio mais alto de África. Em baixo um centro comercial, ao lado um hotel, em cima uma torre de escritórios, com miradouro no topo. Cá está então o centro comercial, aqui os armazéns Woolworths, ali a cadeia de frango luso-moçambicana Nando"s, mais adiante a Levi"s, as lojas que se vêem por toda a parte na África do Sul. Escadas rolantes em ziguezague por três andares cheias de gente - mas nem um branco.

- Os brancos vão aos shoppings nos subúrbios - diz Rifumo, sempre lacónico.

Paga-se para subir de elevador ao miradouro. Vamos os quatro sozinhos, 50 andares num fechar de olhos. E lá em cima, um chapão de luz e empregados a encerar. Tudo limpíssimo, numa volta de 360 graus, mas nem um turista. Joanesburgo aos pés, só para nós.

- Aqui a vista para norte, com o Ellis Stadium, estão a ver? - situa Lucky.

Quem viu o filme de Clint Eastwood Invictus reconhecerá o estádio da final do Mundial de râguebi, em 1995.

- E ali está a torre de Hillbrow, com a bola de futebol.

Agora decorada para o Mundial de futebol, esta antena gigante é outra marca da paisagem de Joanesburgo.

E continuando a andar à volta: a Ponte Nelson Mandela, que liga a Baixa aos bairros próximos, como Braamfontein; a extensão horizontal de Melville, o novo bairro boémio; Soccer City, o estádio onde abre e fecha o Mundial, e ao fundo o Soweto; as velhas minas de ouro.

Mas em primeiro plano estão os arranha-céus, alguns abandonados, outros ocupados.

- O hotel aqui ao lado não está a funcionar, por causa do crime, venderam a mobília - resume Lucky.

E aquela praça ali em baixo, com autocarros vermelhos de dois andares?

- É a Praça Gandhi.

Resistência pacífica

O jovem Gandhi veio para a África do Sul trabalhar como advogado no fim do século XIX. Primeiro Pretória e depois Joanesburgo. Ficou mais de 20 anos. Foi aqui, ao ser expulso de um comboio ou impedido de comer num restaurante por não ser branco, que Gandhi despertou para a resistência pacífica. Voltou à Índia para mudar tudo, mas deixou uma herança ao ANC, o partido de Mandela. E o ANC defendeu a resistência pacífica até aos anos 60.


Agora, o jovem Gandhi é uma estátua no centro da praça. Há pouco estávamos a vê-la lá do alto, agora deambulamos à volta dela. E vista assim, contra um céu azul-azul, parece viva, com as abas da longa casaca esculpidas em movimento.

Na Baixa de Joanesburgo, o jovem Gandhi vai a andar para sempre.

E nos bancos à volta, avós negras com grandes sacos a conversar, imigrantes à espera de nada, namorados à espera de namoradas. Em frente a estação, com cenas de futebol impressas nos autocarros de alto a baixo.

- Mal podemos esperar pelo Mundial - diz Monica, 32 anos, uma vendedora de doces na esquina.

- Encontrar pessoas diferentes! - exclama um rapaz ao lado, Mussa, 28 anos, encostando a cara à dela.

São namorados?

- Não, somos amigos! - grita ele, abrindo os braços. Com mais umas plumas, podia estar numa parada gay. - Vai fazer bem à nossa economia, atrair gente à África do Sul.

E fazem os dois a festa, cara com cara, a fazer que dançam o tango na esquina da Praça Gandhi.

Arte na rua principal

Almoçamos num dos cafés que estão a abrir na Main Street. A grande novidade da rua é o Arts on Main, um espaço enorme que recupera vários armazéns e fábricas, na lógica dos "centros de indústrias criativas", como a Lisbon Factory. O Instituto Alemão abriu uma delegação lá; aquele que é talvez o mais conhecido artista sul-africano, William Kentridge, instalou lá o seu atelier; há galerias, lojas de roupa, um restaurante, pátio com esplanada, oliveiras a crescer. E há brancos misturados com negros. Deve ser mesmo o lugar com mais brancos por metro quadrado da Baixa de Joanesburgo.


Eis o resultado do investimento feito por Jonathan Liebmann, o milionário que montou o Arts on Main, um rapaz de 27 anos que parece um latino-americano, camisa, jeans, gel e telemóvel sempre a tocar. Dá-nos dez minutos na esplanada, entre deixar um grupo e ir ter com outro.

- O Mundial não foi o factor decisivo, mas aumentou o investimento governamental nesta zona, e isso encorajou investidores privados a vir para aqui. Para mim não foi fundamental, quando comecei o governo ainda não tinha começado, mas para muita gente que agora está no CBD foi importante.

O que é que Jonathan queria, quando começou?

- Criar um ambiente criativo. Não o fiz com a intenção de acabar com as barreiras raciais, mas a arte é boa para isso. Num ambiente criativo, naturalmente acabamos por ter uma comunidade integrada. E eu diria que agora é um dos poucos lugares onde encontramos uma comunidade racialmente integrada não-rica. Porque há subúrbios ricos como Sandton, com brancos e negros, mas isso não é classe média.

O Arts on Main é só a primeira parte. Jonathan está a construir uma torre aqui perto que vai ter 200 apartamentos, a 30 mil euros para comprar ou 280 euros por mês para alugar.

- A ideia é atrair criadores em início de carreira. E terão espaços de graça para trabalhar e para expor.

Saindo por um dos portões, as fachadas de tijolo conservam os velhos letreiros, género Brandy Warehouse. Há um viaduto com carros por baixo, um homem a dormir dentro de um deles. Passam negros a pé. Brancos ainda não.

Lá adiante a fachada de um arranha-céus coberta com um homem a soprar uma vuvuzela, a longa corneta dos jogos de futebol. O slogan diz: Make Noise. É um anúncio adivinhem de quem: Daily Sun, o tablóide de Lucky & Rifumo.

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