Tempo novo? Sim, mas convém não exagerar

O Presidente francês não era o mais jovem dos líderes europeus em Bruxelas. O novo primeiro-ministro irlandês, Leo Varadhkar, ainda não fez 39 anos. Além disso, é gay e descendente de um imigrante indiano. Na católica Irlanda. Nem tudo está perdido.

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1.Como sabemos de anteriores crises e desta última, que foi a pior delas todas, a Europa precisa de pouco para embandeirar em arco, deixando para trás as dificuldades e varrendo os problemas insolúveis para debaixo do tapete. Foi isto que aconteceu na semana passada? A resposta é não e sim. A eleição de Emmanuel Macron teve o imediato mérito de tornar o ar muito mais respirável. E só isso é importante. A “Macronmania” perdura em Bruxelas ou em Berlim. Percebe-se porquê. Quando a Europa se via cada vez mais asfixiada pela imparável ascensão dos extremos políticos, o Presidente francês, sem fazer qualquer cedência às bandeiras antieuropeias e anti-imigrantes, venceu as eleições com uma imensa folga sobre Marine Le Pen. Com tudo a correr mal, desde o Brexit a Donald Trump, a sua vitória foi sentida como um ponto de viragem, para além de um imenso alívio. A França é a França, como dizia Juncker. O seu lugar e o seu papel na Europa são insubstituíveis para os equilíbrios de poder internos e para a definição de um caminho comum. Tinha-se deixado ficar para trás. Macron quer devolver-lhe um papel liderante e quer, sobretudo, revitalizar o eixo Paris-Berlim, a parceria que moldou desde o início a integração europeia, quase sempre necessária para que as coisas possam avançar. Em Berlim, Merkel parece encantada com o seu novo parceiro. Espera-se que, desta vez, Berlim faça um esforço para ir ao encontro de Paris. O Presidente e a chanceler terminaram a cimeira com uma conferência de imprensa conjunta (tinham dado outra no primeiro dia) para mostrar que os bons tempos estão de volta. A coreografia importa. Mas a presença dos dois perante os jornalistas também quis dizer que havia terreno comum suficiente para apresentar. A cimeira foi cuidadosamente preparada em Berlim, Paris e Bruxelas, para que tudo pudesse correr bem. O Brexit foi remetido para segundo plano, apesar de Theresa May se ter apresentado em versão soft, depois da monumental derrota que sofreu nas eleições de 8 de Junho. Levou uma proposta “justa e generosa” para os cidadãos europeus que vivem no Reino Unido. Mas ainda suficientemente vaga para levar os seus parceiros a dizer que esperavam mais. O Conselho Europeu deu a May o tempo do café para apresentar a proposta, antes de a convidar a sair. É incrível ver um país como o Reino Unido fazer esta figura. A chanceler resumiu tudo numa frase: “Precisamos de tratar do nosso futuro a 27. Este trabalho deve ter precedências em relação as negociações do Brexit”.

O Presidente francês já tinha tratado do Brexit nos dias anteriores, estendendo a mão a Theresa May para lhe dizer que a França continua a querer cooperar com o Reino Unido, sobretudo nos domínios da defesa e da luta contra o terrorismo. Os dois países continuam a ser os únicos com capacidade para projectar forças de combate (e dispostos a correr os riscos inerentes) e assinaram, em Novembro de 2010, um Tratado de Defesa que abrange várias áreas de cooperação. O Presidente quis sublinhar (e bem) que não faz parte dos que gostam de culpar a pérfida Albion por todos os seus desaires. Os 27 líderes europeus anunciaram um “passo histórico” no sentido de dotar a Europa de uma capacidade militar autónoma, muito facilitado pelo comportamento do Presidente americano. A única dificuldade é que o vão fazer quando perdem um país cujo contributo seria decisivo. Já está em andamento a criação de uma “cooperação estruturada permanente” (prevista no Tratado de Lisboa mas nunca utilizada) para que alguns países, a começar pela Alemanha e pela França, comecem a pôr em comum as suas capacidades. A cimeira aprovou um fundo de 1,5 mil milhões de euros, proposto pela Comissão para financiar projectos de investigação no domínio da defesa. O momento pode ser “histórico”, é certamente importante, mas não há que ter ilusões - a segurança “hard” vai ter de continuar a ser garantida pela NATO, de preferência com os Estados Unidos. De resto, é do outro lado do Atlântico que vem o exemplo cujas vantagens os europeus começam finalmente a perceber. O orçamento do Pentágono é o maior financiador da investigação das universidades americanas, criando um ciclo virtuoso que fortalece a sua capacidade militar e, ao mesmo tempo, a inovação económica e social. O que é preciso na Europa é que este fundo conduza à cooperação entre vários países, em vez de se concentrar apenas nos que têm poderosas indústrias militares, como França, Alemanha, Itália e Suécia.

2.A agenda da cimeira era vasta. Para além da defesa e do combate ao terrorismo, incluía os refugiados e o comércio. Correu bem, mesmo que os assuntos mais polémicos tenham sido adiados para melhor ocasião. Um deles tem apenas uma relevância simbólica: a atribuição das duas agências europeias sediadas no Reino Unido. O outro é fundamental: diz respeito aos refugiados. Os países de Leste continuam a fazer finca-pé, rejeitando as quotas que Bruxelas quer estabelecer. Uma decisão final foi igualmente adiada. A Polónia e a Hungria ainda tentaram estragar a festa, admitindo não comparecer num encontro marcado entre o Presidente francês e o Grupo de Visegrado, em protesto contra as suas declarações em matéria de democracias iliberais e tentações autoritárias, incompatíveis com os valores que estão na base da União Europeia. Acaram por comparecer.

3.A outra questão complicada diz respeito à melhor forma de lidar com a globalização. Macron levou o assunto para a cimeira, defendendo uma “Europa que proteja”. Do terrorismo e da concorrência desleal dos outros grandes parceiros comerciais da Europa. A ideia de reciprocidade em matéria de acesso aos concursos públicos ou de investimento foi facilmente aceite por Berlim. O combate ao dumping social também. A proposta mais polémica, que acabou por ser fortemente amenizada, ia no sentido de criar um mecanismo em Bruxelas para escrutinar o investimento estrangeiro em sectores considerados estratégicos para a Europa. O país visado é, obviamente, a China. Merkel não precisou de se distanciar de Macron, se é que o quis fazer. Os pequenos países de economias abertas trataram de reduzir drasticamente a ambição desta proposta. Estamos a falar dos nórdicos, do Benelux, mas também de Portugal ou da Irlanda. António Costa foi um dos principais críticos da medida. Como Macron diria no final, o eixo Paris-Berlim é absolutamente necessário, “mas não suficiente”. O debate irá continuar.

4.Ficou de fora a questão, porventura, mais importante: a conclusão da reforma da zona euro. Já se sabe o que defende Macron, aliás em linha com o que pensam os países do Sul da Europa. Se não houver mecanismos para contrariar a divergência económica, o euro pode não resistir à sua próxima crise. E a verdade é que, apesar da campanha eleitoral, a chanceler não se coibiu de dizer que está aberta a algumas dessas propostas, incluindo um ministro das Finanças europeu com um orçamento à disposição para enfrentar choques assimétricos. Falta muito para se chegar a um acordo político, mas talvez seja legítimo dizer que \já faltou mais. O à-vontade com que Merkel se prepara para vencer folgadamente as eleições de Setembro pode vir a facilitar um compromisso. Não é de agora que Macron manifesta a sua preocupação com os países que sofreram programas de ajustamento brutais. No auge das negociações com a Grécia, Berlim chegou a pedir a Hollande para não enviar o seu assessor a Atenas. Era demasiado condescendente. Na quinta-feira, declarou não ter a certeza de que a Europa “tenha mostrado solidariedade suficiente para com os países atingidos pelas crises económicas e financeiras”.

Só um mais um pormenor. O Presidente francês não era o mais jovem dos líderes europeus em Bruxelas. O novo primeiro-ministro irlandês, Leo Varadhkar (Fine Gael), ainda não fez 39 anos. Além disso, é gay e descendente de um imigrante indiano. Na católica Irlanda. Nem tudo está perdido.

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