"Putin tem poderes ditatoriais mas não age como um ditador absoluto"

Steven Lee Myers, ex-correspondente em Moscovo do The New York Times traça em O Novo Czar: A Ascensão e o Reinado de Vladimir Putin (Edições 70) o percurso do homem que moldou a Rússia de hoje.

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“Tudo no temperamento de Putin se resume à lei e à ordem”, diz Steven Lee Myers Reuters/POOL

A Rússia é hoje um país bastante diferente daquele que foi governado pelos czares. Porquê este título?
É uma longa história. Lembro-me de um artigo que escrevi quando o [ex-Presidente russo, Boris] Ieltsine morreu. Citei uma especialista, Nina Kruscheva, que é bisneta do [ex-líder da URSS] Nikita Kruschev, que me disse Ieltsine era, de muitas formas, o pai da democracia russa e ela referiu-se à imagem que estavam a criar de um “czar da democracia”. Sempre me lembrei dessa frase. Quando enviei a proposta do livro foi esse o título que sugeri, mas alguma dessa subtileza perdeu-se porque a editora preferiu um título mais simples como “o novo czar”. É verdade que é um país muito diferente da Rússia imperial ou da União Soviética, mas, de qualquer forma, Putin e as pessoas de que se rodeou foram buscar alguns aspectos deste modelo de liderança imperial. O tipo de poder que ele tem hoje, mesmo sendo numa democracia formal, é semelhante ao de um czar. Ele é visto pelas pessoas como tendo esse tipo de poder e, cada vez mais, uma espécie de autoridade religiosa também.

Entre uma ditadura e uma democracia, onde coloca hoje a Rússia?
Formalmente é uma democracia, tem uma Constituição, garante alguns direitos, há eleições tanto para o Parlamento como para o Presidente. A questão é se será [um sistema] verdadeiramente democrático por natureza. Nesse aspecto, acho que existe um entendimento abrangente, dentro e fora da Rússia, de que não é um país democrático. Não se pode ter uma democracia quando não se tem uma imprensa livre, liberdade de expressão e reunião, liberdade religiosa. Mas não se trata de uma ditadura e decerto não é uma ditadura totalitária. Há aspectos ditatoriais e os serviços secretos são cada vez mais reminiscentes da época soviética. Ao mesmo tempo, não há uma censura oficial, não há agentes secretos a vigiarem cada rua, que eram alguns dos piores aspectos da sociedade soviética. Há algumas pessoas que notam uma cada vez maior polícia do pensamento. A chefe da biblioteca ucraniana está a ser acusada de extremismo porque havia livros de nacionalistas ucranianos disponíveis para os leitores. É uma bibliotecária, não é uma extremista. E ela está em tribunal e pode ficar dez anos presa. É um sinal preocupante de que o país está a ficar cada vez mais ditatorial.

No livro refere o conceito de “ditadura da lei”, enunciado por Putin logo no início da sua presidência. Passámos a outra fase?
Putin apareceu com uma grande frase que descreve a sua atitude em relação ao poder. O problema é que a lei é algo vivo e pode ser violada e muitas vezes é. Na União Soviética, mesmo durante Estaline, havia direitos civis e outras leis constitucionais que foram amplamente violadas durante o Grande Terror dos anos 1930. Tudo no temperamento e na personalidade de Putin se resume à lei e ordem, ele acredita que é isso que faz com que um país esteja seguro. Julgo que está relacionado com a sua educação e o seu passado como agente do KGB. Quando ele usa a expressão “ditadura da lei” é também em resposta à época em que chegou ao poder. Havia uma sensação de que a lei já não era respeitada na Rússia, que a corrupção era salvagem e que as ruas estavam tomadas por guerras de gangues. Por vezes esquecemo-nos do caos que foram os anos 1990 na Rússia, e esta foi a forma dele de garantir aos russos que a lei seria cumprida e a ordem garantida.

Para além dessa obsessão pela lei e ordem, que outras características acompanharam Putin desde os tempos do KGB?
Diria que uma delas é a desconfiança, mas é algo que não está directamente relacionado com o passado no KGB, mas sim com o passado soviético. E muitos russos partilham disso, uma prudência em relação a estranhos. Como agente do KGB ele deveria ser muito discreto e cuidadoso acerca do que fazia ou dizia. Para além desse desejo por segurança, também a defesa de um Estado forte.

Ao longo do seu percurso, Putin parece não seguir uma ideologia característica ou ter sequer um programa político que quer implementar. Que pensa ele, verdadeiramente?
É absolutamente verdade. Ele não é propriamente ideológico. Ele nunca foi, por exemplo, um comunista por ideologia. Ele juntou-se ao partido para entrar no KGB, mas não se considerava comunista, era sempre um agente de segurança em primeiro lugar. Nos anos 1990, ele trabalhou com um dos grandes democratas da nova Rússia, [o ex-presidente da câmara de São Petersburgo nos anos 1990] Anatoli Sobtchak. Em alguns aspectos ele adaptou-se a cada circunstância e nunca se tornou num democrata ou liberal. Da mesma forma, nunca teve uma missão ideológica que o motivasse. O putinismo lembra um bufete, em que ele mergulha no passado e escolhe partes de ideias, filosofias e ideologias que se adequam a cada momento. Então vemo-lo a mudar e a adaptar-se às circunstâncias. E tem mudado ao longo do tempo. Quando voltou em 2012, trouxe uma ideologia mais conservadora, a defesa dos valores da família, uma agenda anti-gay. Não tínhamos ouvido isso antes. Essa noção dos valores da família, da igreja e do exército como pilares do Estado, é algo muito antigo, que precede a União Soviética.

Por vezes Putin aparece como um estratega ou um jogador de xadrez, mas noutras ocasiões surge como um líder que apenas reage aos acontecimentos. Como superar esta contradição?
Não acho que sejam mutuamente exclusivas. Eu jogo xadrez e sei que é possível jogar em reacção. O que os seus críticos dizem é que no xadrez há regras e, com Putin, não há regras. Eu concordo com isso. Diz-se normalmente que Putin é um táctico, mais do que um estratega e há muitas provas que suportam isso. A forma como avalia uma situação e age de forma rápida sem pensar bem nas consequências, tal como aconteceu com a Crimeia. Putin e as pessoas que o apoiam dizem que ele tem uma estratégia, que é tornar a Rússia grande outra vez e restaurar o seu lugar próprio.

Como é que um burocrata discreto pode subir a escada do poder e tornar-se no homem mais poderoso da Rússia pós-soviética?
Fiquei fascinado com a noção de ele ter vindo do nada, com um passado muito humilde, nunca tendo feito parte da elite. Mesmo como agente do KGB ele não subiu muito alto. Foi uma série extraordinária de acontecimentos, quase acidentais, que o levaram ao topo. Ele não era ambicioso, não tinha conexões políticas, nunca concorreu a um cargo público e nem sequer apreciava a democracia assim tanto, especialmente depois de o presidente da câmara que ele adorava ter sido demitido. E, mesmo assim, ele chegou ao topo. Acho que parte disso se deve à sua competência e ao talento como administrador.

A fidelidade aparece como o principal critério para Putin juntar pessoas à sua volta. Isso mantém-se hoje, mesmo apesar de o seu poder parecer imperturbável?
Acho que hoje ainda mais é assim. Numa das primeiras entrevistas que deu, Putin disse não ter conhecido muita gente na sua vida que considerasse amigos. O que é notável é que se vê esse círculo permanecer muito próximo dele. Nos últimos meses, algumas dessas pessoas parecem ter deixado de estar nas boas graças, mas ninguém apareceu para o desafiar ou para se lhe opor. À medida que envelhece, haverá ainda mais razões para confiar menos nas pessoas e o seu círculo irá continuar a ser muito pequeno.

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Steven Lee Myers, ex-correspondente do New York Times em Moscovo Michael Lionstar

Entre o círculo próximo há também um receio em cair em desfavor, porque o que lhes pode acontecer depois poderá ser bastante doloroso. Não será também uma questão de sobrevivência?
Há um sistema vertical de poder que emana de Putin. É um sistema muito personalista. O problema é que, por todas as decisões serem tomadas por ele – o que não significa que controla tudo – há uma falta de transparência. Ainda terça-feira houve uma detenção surpreendente do ministro da Economia, alguém que serviu Putin de forma muito leal durante muitos anos. Devido à falta de transparência, não é fácil perceber porquê. Ele caiu em desgraça e é acusado de corrupção, mas é extraordinário que alguém a esse nível tenha sido preso. A mensagem é a de que ninguém está a salvo. Se alguém cruzar uma linha, que ninguém sabe qual é, pode ser preso a meio da noite. Isso cria este medo, mesmo entre ministros.

Durante os anos que passou na Rússia notou alguma degradação nas condições para os jornalistas trabalharem?
Para os jornalistas ocidentais nem tanto. Estive primeiro em 1998 e definitivamente havia uma paisagem mediática muito mais aberta. Regressei em 2002 e pareceu-me muito mais limitada, sobretudo na televisão. Mas ainda existiam jornais da oposição, não houve um regresso da censura. Porém, viu-se um controlo cada vez maior da imprensa russa, há muito menos visões plurais nos media. Quem não cumprir não é que seja fechado pelo Governo, mas recebem penalizações, as leis de difamação são muito apertadas e alguns dos empresários que têm jornais obedecem voluntariamente para não terem problemas. É por isso que alguns temas simplesmente não são abordados, incluindo o dinheiro de Putin ou a sua vida pessoal. Para os correspondentes, senti sempre que eles se interessavam muito pelo nosso trabalho, mas nunca houve qualquer acção aberta contra o meu trabalho, nem tentaram interferir. As pessoas têm-se tornado mais desconfiadas, especialmente depois da Crimeia. Dantes era fácil conseguir falar com quem era preciso, mas tornou-se cada vez mais difícil por causa da hostilidade geral em relação aos EUA.

Putin pode ser visto como um moderado entre tendências que defendem uma abordagem mais extremista no Kremlin?
Acho que os poderes de Putin são ditatoriais, mas não creio que ele aja como um ditador absoluto. Pode haver pessoas à sua volta que defendam uma abordagem mais hostil em relação aos EUA. Mas também há pessoas à sua volta que defendem uma perspectiva mais liberal. Ele parece ser uma força moderadora entre visões opostas. Mas não digo que ele seja um moderado, à luz das políticas que tem levado a cabo. Ele não é certamente um nacionalista fanático, provavelmente porque percebe que a sociedade russa é bastante complexa, há muitas etnias, e se se tornar num nacionalista étnico acabaria por dividir o país. Foi o que vimos na antiga Jugoslávia com os sérvios. Ele nunca mostrou uma tendência para alimentar esse tipo de receios.

Que tipo de relação pode Putin estabelecer com Donald Trump no futuro próximo?
Foi extraordinário perceber o papel relevante que a Rússia teve nestas eleições. E é ainda mais extraordinária esta admiração que Donald Trump expressou por Putin, tendo em conta que estes dois homens nem sequer se conheceram. Na campanha, Trump nunca foi muito específico e nunca deu muitos detalhes sobre o que significaria trabalhar com a Rússia ou que tipo de acordo poderia fazer. Ele parece acreditar que estamos num confronto desnecessário com a Rússia, que estamos mais alinhados do que divididos e, particularmente no combate ao Estado Islâmico, que deveríamos estar a trabalhar juntos, porque ambos os países partilham o objectivo de destruir o EI.

Essa perspectiva encaixa perfeitamente com aquilo que Putin quer.
Putin é um actor muito pragmático e é também um negociador. Ele vê os assuntos internacionais como transaccionáveis. Se ele puder fazer um acordo com Trump, é isso que fará. Não será um regresso a relações próximas a breve prazo, porque a Rússia e os EUA têm posições muito diferentes em questões muito importantes. Naquilo que toca à corrupção e aos negócios, ao destino da Ucrânia, à NATO – ninguém irá desmantelar a aliança da NATO apenas para fazer Putin feliz. Vai continuar a haver confronto. Acho que quando Trump se sentar a uma mesa com generais da NATO vai sentir que não será fácil encontrar formas de acomodar a Rússia.

A forma como descreve a situação na Crimeia deixa transparecer que nos próximos tempos não haverá grandes desenvolvimentos para além da consolidação do controlo russo. A península será russa nas próximas décadas?
Acho que é o mais provável. Não creio que Putin venha a trocar a Crimeia por nada. Há muitas razões históricas, incluindo a questão da Frota do Mar Negro que está lá baseada, portanto não espero que isso mude enquanto Putin estiver no poder – e mesmo depois disso. Após a II Guerra Mundial, a URSS anexou os bálticos e nem os EUA nem outros países os reconheceram como fazendo parte da União Soviética. E foram precisos 50 anos até que a União Soviética colapsasse para que esses países voltassem a ter liberdade. Penso que o mesmo se irá passar com a Crimeia, cuja situação só será resolvida daqui a umas décadas, quando ambos formos velhos ou já cá nem estivermos.

Podemos esperar uma recandidatura de Putin em 2018 ou estará já a pensar numa saída semelhante à de Ieltsine e a preparar um sucessor?
A não ser que eu esteja totalmente enganado ou que aconteça algo de imprevisível, Putin irá recandidatar-se na Primavera de 2018, mesmo antes do Campeonato do Mundo, que é algo muito importante para a Rússia. Ele será reeleito se escolher ser reeleito. Em algum momento ele irá tratar, tal como Ieltsine, da sua sucessão. Creio que entre 2023 e 2024 ele irá começar a planear uma transição muito semelhante à anterior. Poderá ser alguém como Medvedev, talvez até o próprio outra vez, a ser promovido à presidência, enquanto Putin permanece em cena, ou então como um líder retirado. Mas acho que ele não esteja a pensar nisso agora.

Parece não haver espaço para que uma oposição credível e unificada apareça para mudar o estado das coisas.
Deve-se à forma como o sistema está criado. Foi eliminada a possibilidade de emergir uma oposição. Há os partidos da oposição que na realidade não fazem oposição nenhuma, como os comunistas, mas também há os partidos que representam valores liberais e democráticos e não têm oportunidade de competir por votos. Quando aparece alguém popular, como Aleksei Navalni, é preso, ficando impedido de concorrer a cargos públicos.

Mas parece não haver terreno para movimentos semelhantes ao da Ucrânia, por exemplo. A popularidade de Putin é enorme e os movimentos de oposição estão muito ligados a uma pequena elite urbana que não tem apelo popular.
Passei muito tempo em Moscovo e noutros sítios e é verdade, Putin é muito popular. Mas a verdade é que [movimentos de oposição] conseguiram levar cem mil pessoas à rua [em Moscovo, em Dezembro de 2011 na sequência das eleições parlamentares] E isso sugere que há um apetite para a mudança, especialmente nas cidades grandes. A maioria destes movimentos são promovidos por uma elite urbana, não é comum haver grandes manifestações em pequenas cidades rurais. E Putin tem sido muito diligente em assegurar que não acontecem, ao contrário da Ucrânia, em que as manifestações eram permitidas. Há mais política no Parlamento, há partidos que competem verdadeiramente. É um sistema mais dinâmico, se bem que caótico. Se houvesse espaço, as pessoas iriam apoiar um movimento destes.

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