Purpurina para todos, sempre acima das nossas possibilidades

1. Eu vinha pelo meio do lixo: Cinelândia, Rio Branco, Presidente Vargas, Candelária, o eixo nobre do centro do Rio de Janeiro. Eram nove da manhã, terça-feira de Carnaval, os últimos sobreviventes do Sambódromo desciam ao metro, panteras agora sem cabeça, flores agora sem corola, pinóquios, bailarinas. Cá em cima, tudo era sobra, toneladas que os garis em greve não tinham recolhido, nem iam recolher nas próximas horas, dias. É uma daquelas palavras que a língua aqui tem: gari. A leveza de um garoto soltando pipa no céu. Só que não: homem ou mulher do lixo. Fardam cor de laranja, então a greve passou a #revoltalaranja nas redes sociais. Gente oportunista, estragando o Carnaval, o cartão-postal, comentam cariocas que gastam num dia o que os garis ganham num mês, e a prefeitura já matutando em demiti-los, viva a luta da classe capitalista. Entretanto, os fantasmas catam no lixo, loucos, sem-tecto, viciados em crack, todos os que sobram no centro do Rio quando as luzes se apagam, ou são nove da manhã de Carnaval, e o sol é a luz mais cruel. Catam o que já nem vale, porque os catadores passaram por aqui, encheram sacos de latinhas, juntaram papelão. Bem brilha a águia dourada do Theatro Municipal com “h” que não permite a entrada de chinelo, todo o lixo da Cinelândia agora a seus pés. Ao longo das fachadas da Rio Branco, onde o sol não fere, são acampamentos, vultos furtivos, corpos na calçada. Chegando à Presidente Vargas, páro a olhar a porta fechada da Candelária. Depois volto à esquerda, na direcção oposta. Eis senão quando um carro-barco-carrossel sai de uma fábula, com dois soldadinhos de bochechas coradas, e atravessa lentamente a avenida. É uma das alegorias infantis da União da Ilha, que desfilou esta noite no Sambódromo. Está a recolher aos estaleiros das fantasias, onde será desmembrada, ou talvez fique a morrer ao sol. Um negão com um colete que diz Apoio ao Trânsito aguarda a passagem, depois esbraceja para a próxima fábula dar a curva, porque há todo um comboio atrás. Choro, rio, meu Rio de Janeiro: rezaria se rezasse.

2. Desço ao balcão de todos os dias, melhor café expresso de Laranjeiras e arredores. Fechou no Carnaval mas reabriu hoje, quinta-feira. A mais nova, Paloma, pergunta-me se pulei muito, se fui na praia. Ela pulou, ela foi, folga de quem nunca tem duas folgas seguidas. A mais velha, Dona Luzia, é pouco mais velha que eu, mas chamo-lhe Dona Luzia porque parece uma avó. Enquanto sopro a espuma do meu café, chega um morador de Laranjeiras, bigodes grisalhos de centro-esquerda, comenta que vai chover. Todos olhamos para o céu: está com cara disso mesmo. Ele diz que tomara que não, só de pensar no lixo apodrecendo no Largo do Machado, no Aterro do Flamengo, para não ir mais longe. Eu ainda não tinha pensado nisso, como vamos navegar no esgoto se cair uma daquelas chuvas de cachoeira, espalhando a enxurrada. Então Dona Luzia mete o pau nos garis, que dizem que ganham 800 reais (250 euros) mas o prefeito já disse que eles ganham é 1200 reais (375 euros), porque recebem mais 40 por cento disto e mais aquilo de alimentação, portanto Dona Luzia acha que estão é bem, melhor do que policial da PM, melhor do que professor, melhor do que ela. Aí eu digo, Dona Luzia, porque é que nessa cidade pobre sempre fica contra pobre? Aí ela diz, gari não é pobre, não, eles trabalham seis horas por dia, e eu aqui de domingo a domingo, de 9h a 18h, ganho 1000 reais (312 euros). Aí, eu penso que todo o salário de Dona Luzia é o que pago pelo quarto aqui em cima, eu que acho que já está impossível de morar nessa cidade. Quanto a Paloma, que quando tira a touca tem um cabelão, garota de Ipanema-dos-subúrbios, entra no bloco do pobre-contra-pobre: que é que eles tinham de fazer isso no Carnaval?

3. Subo, volto à crónica no computador. Angélica Freitas (poeta que em Junho estará no Próximo Futuro da Gulbenkian) acaba de postar no Facebook o salário de um professor em Pelotas, a cidade do interior do Rio Grande do Sul onde ela mora: 356,78. São 111 euros. Isto a propósito de quem fica para trás no Brasil Maravilha, como os garis que limpam o lixo que a classe média produz, vivem a respirá-lo mesmo, para depois essa classe média poder franzir a cara de nojo ao ver as imagens do lixo no Jornal Nacional. De resto, 356,78 reais dá para quatro jantarem numa churrascaria do Rio de Janeiro, se não abusarem da bebida.

4. Nisto, chove, miudinho. Parece que vai ficar assim até eu partir. Nada de último mergulho. Talvez uma última volta pela floresta. Poucas coisas no mundo estão tão próximas da ressurreição como um mergulho, uma volta pela floresta, quando esse mar é a cidade, essa floresta é a cidade. O Rio de Janeiro é a contínua ressurreição de si mesmo, a pior cidade do mundo que ressuscita na melhor cidade do mundo que ressuscita na pior cidade do mundo que ressuscita. O carro-barco-carrossel da União da Ilha atravessando a Presidente Vargas, depois de todo o lixo. Talvez o Rio, como o amor, seja uma forma de conversão.

5. Toda a mentira é verdade no Rio de Janeiro, todo o animal é humano no Rio de Janeiro, todo o carioca é deus no Rio de Janeiro. Eu, que não acredito em deus, acredito que o Rio de Janeiro é uma espécie de catalisador do deus em nós. Como era mesmo aquela canção sobre a purpurina? “Se uma luz não ilumina

Não há jeito de brilhar.” Sai tristeza, o que levo do Rio não pesa na bagagem.

(Esta é a última crónica da série Atlântico-Sul. Para a semana, Alexandra Lucas Coelho inicia a série Não Ficções)

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