O delicioso labirinto espanhol

O que está em jogo não é só o governo mas uma questão de maior envergadura: a posição que cada partido ocupará depois da queda do bipartidarismo, ou seja, o futuro sistema partidário.

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A Espanha vai em mais de sete meses sem governo e há quem augure que assim será até Novembro ou Janeiro, datas possíveis de “terceiras eleições”. Os títulos dos editoriais do El País são significativos: “Un Gobierno ya!” ou “Que se vayan todos”. Ainda não houve grandes estragos mas levantam-se agora “questões de Estado”, como a reabertura do processo independentista catalão, o Orçamento e a necessidade de negociar com Bruxelas um novo plano de estabilidade financeira. Para não falar em “reformas estruturais” e em revisão constitucional.

O Rei encarregou Mariano Rajoy (Partido Popular) de tentar formar governo. Ele aceitou mas não garante que se apresente ao voto de investidura no Congresso se não tiver apoios. Convocou Pedro Sánchez (PSOE) e Albert Rivera (Cidadãos) para negociações esta semana mas ambos responderam que lhe irão dizer que não há nada a negociar. Exigem que reúna uma maioria com os “aliados potenciais” — que não tem — e se apresente à investidura.

O Cidadãos garante a abstenção na segunda votação, rejeitando o “sim” que daria a Rajoy quase a maioria com 169 votos (a maioria absoluta é 176), o que colocaria o PSOE perante o dilema de votar contra ou se abster, responsabilizando-se por uma eventual repetição das eleições. Rivera apelou aos socialistas que se abstenham para viabilizar um governo minoritário (e débil) do PP. O próprio Rivera aceitaria participar numa grande coligação (PP, PSOE e Cidadãos) mas na condição de Rajoy, chefe do maior partido e já proposto pelo Rei, sair de cena e ceder lugar a outro. Mas, depois de 26 de Junho, é mais difícil pedir ao PP “a cabeça de Rajoy”.

Alguns analistas prevêem que Rajoy vai seguir o princípio de que “quem resiste ganha” e comprar tempo, esperando que a ameaça de novas eleições leve o Cidadãos e o PSOE a reconsiderarem as suas posições. Quer evitar uma derrota no Congresso. Mas desistir da investidura pode ser um suicídio político, apressando uma transição dentro do PP: Seria, nas palavras de um analista, “o líder que no último ano foi incapaz de transformar as suas vitórias eleitorais em governo”, logo inútil ao partido.

O bloqueio

Os políticos estão no banco dos réus. A sua qualidade não é famosa. Mas há dificuldades “estruturais”. A passagem do bipartidarismo a um jogo de quatro partidos ainda não impôs novas regras que levem a pactos e convergências. Pelo contrário, há um jogo de “vetos cruzados” que inviabiliza soluções. Na anterior legislatura, a solução foi repetir as eleições. Desta vez é politicamente intolerável — mas não inevitável.

O resultado voto de 26 de Junho criou uma situação peculiar. A formação de um governo passa quase inexoravelmente pelo PP. “No entanto, os eleitores colocaram o PSOE como eixo da dinâmica política”, explica o politólogo Jorge Galindo. “Teoricamente, poderia atrair os três outros blocos alternativos (Cidadãos, Podemos e nacionalistas)”. Mas seria politicamente inviável.

“Na prática, nenhum dos quatro se quer mover demasiado por medo de perder para os seus rivais imediatos. As implicações desta timidez vão muito além da investidura.” Vão condicionar a governação e a actividade legislativa. Por outro lado, incitam a encarar a política não como a arte do pacto mas como um jogo de soma zero.

Outro politólogo, Lluís Orriols, reconhece que “os políticos espanhóis encontram-se perante um cenário particularmente complexo”. O que está em jogo não é apenas o próximo governo, mas uma “questão de maior envergadura: a posição que cada partido ocupará depois da queda do bipartidarismo”.

Um exemplo: o Cidadãos procura salvaguardar o seu espaço político, ainda não consolidado. Lançou-se na disputa política em nome das reformas e da modernização da Espanha, da moralização da vida política e do combate à corrupção. Mas tem um problema: deixou de haver alternativas ao PP. As eleições reforçaram politicamente Rajoy. Rivera estaria disponível para uma coligação mas não pode aceitar ser o “vice-presidente de Rajoy”. Por isso limita-se à abstenção e pressiona o PSOE a fazer o mesmo. Está em jogo a sua identidade.

“Frankenstein”

Diz o El País que Rajoy só terá aceitado o convite do Rei perante a ameaça de uma candidatura alternativa de Sánchez. É uma especulação. O líder socialista declarou de facto aos jornalistas que, caso o PP falhe, o PSOE fará parte da solução. Não eliminou a hipótese de um governo apoiado por Unidos Podemos, Cidadãos e nacionalistas bascos e catalães.

É uma hipótese fantasma. Poderia somar uma maioria absoluta mas é politicamente inviável, sobretudo agora, com as declarações de ruptura com Espanha do parlament catalão. É no entanto um cenário trabalhado pelo “número dois” do Podemos, Iñigo Errejón, mas logo declarado inexequível por Pablo Iglesias. A última coisa que este deseja é colocar Sánchez na Moncloa.

Mesmo assim, a eventual tentação de Sánchez em apostar numa “maioria anti-PP”, após uma rejeição maciça da investidura de Rajoy, preocupa grande parte do grupo dirigente do PSOE. A líder andaluza, Susana Díaz, rival de Sánchez, chamou-lhe “um pesadelo”, defendendo que o partido deve reorganizar-se na oposição. Em Junho, o anterior secretário-geral, Alfredo Rubalcaba, designou esse projecto como “investidura Frankenstein”. Os rivais de Sánchez atribuem a tentação à vontade de permanecer na liderança.

Que interessa ao PSOE? Teme eleições que, segundo alguns “barões”, podem aproximar o PP da maioria absoluta. Qual será o cenário mais favorável? Que o PP possa constituir um governo débil. Mas querem que isso aconteça sem o voto ou sequer a abstenção do PSOE.

O fantasma Podemos

O problema real do PSOE é sempre o mesmo: a sombra do Podemos. Falhado o célebre “sorpasso” nas eleições de Junho, Iglesias não desistiu de se tornar líder da oposição ao PP. Desejaria que o PSOE votasse “sim” na investidura. Declarou expressamente que disputará a Sánchez a liderança da oposição, forma de chegar à desejada hegemonia da esquerda.

Viabilizar um governo PP, ou depois negociar com ele, “seria assinar o suicídio do PSOE e ceder todo o protagonismo da oposição ao Podemos”, diz sob anonimato um dirigente socialista. Por isso a palavra “abstenção” é tabu no interior do PSOE. Até quando? Muitos dizem que — em Setembro e em desespero — para evitar eleições, Sánchez será forçado pelo aparelho a inverter a linha do partido. Ver-se-á.

“Se o PSOE entender que o seu papel é ser alternativa ao PP e não a oposição ao Podemos, poderá entender que convém muito mais aos seus interesses um governo do PP em minoria” graças à sua abstenção, sublinha José Ignácio Torreblanca, director de opinião no El País.

Com o fim do bipartidarismo, o Parlamento passará a ser o centro da política. Perante governos doravante frágeis, o papel da oposição será determinante e poderá inclusive forçar a mão ao executivo. A disciplina partidária da maioria absoluta dará lugar à negociação. Se os partidos tomarem nota desta mudança não haverá eleições. Resta a incógnita: quando começará Sánchez a chefiar a oposição?

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