No labirinto da desconfiança e da traição

No seu romance Uma Pantera na Cave (1995), o escritor israelita Amos Oz descrevia um rapaz que, a dada altura, descobre que as mulheres não têm cornos nem cauda. Nem elas nem os árabes ou as patrulhas britânicas a quem ele costumava atirar pedras e gritar “british go home!”

Devido a tal descoberta, o rapaz, hebreu e fanático, torna-se ponderado e relativista à medida que vai crescendo, mas essa evolução sai-lhe cara: passam a chamar-lhe “reles traidor”. O escritor inventou tal personagem inspirando-se parcialmente na sua própria experiência de vida. Porque também Amos Oz foi, na juventude, é ele que o diz, “um pequeno fanático limitado por uma lavagem cerebral” que apedrejava britânicos em tempos de “intifada” judaica. Tal como, depois e até hoje, com a mesma fúria, os palestinianos apedrejam e insultam os soldados israelitas.

Ora num momento em que, nessas terras onde “toda a gente grita e ninguém se ouve” (palavras ainda de Oz), voltou de forma avassaladora o ajuste de contas bélico e a carnificina do costume, coincidem nas salas portuguesas dois filmes que abordam o eterno conflito israelo-palestiniano sob o ângulo de uma guerra interior: o da desconfiança e da traição. Distribuídos ambos pela Alambique, com louvável sentido de oportunidade, põem-nos perante um cenário de polícias e informadores, onde se repete, monótona e pesadamente, um ciclo que conduz invariavelmente à aniquilação. Um ciclo composto por medo, humilhação, vingança, retaliação, morte. A dada altura não importa já quem mata ou é morto, mata-se porque é preciso provar qualquer coisa (a fidelidade à causa, por exemplo), para vingar alguém ou para calar hesitações de consciência.

Há uma célebre citação sobre as guerras, atribuída ao antigo Presidente dos Estados Unidos Dwight Eisenhower (1890-1969), que se aplica de algum modo neste caso: “Antes da batalha, o planeamento é tudo. Assim que começa o tiroteio, os planos são inúteis.” Ao ver o que se passa, de novo, em Gaza, na mortífera troca de rockets do Hamas e dos bombardeamentos de Israel, percebe-se que a situação é idêntica. A revoltante morte de civis, que o Hamas exibe como “mártires”, ilustra os “planos inúteis” depois de começar o tiroteio. Cada morte amplia o desejo de retaliar, vingar, aplacar o medo ou a ira e isso é um ímpeto sem freio. As imagens, mudas, das agências noticiosas, gritam-nos essa realidade pelo lado da impotência.

Assim é, também, nos filmes dos realizadores Hany Abu-Assad, palestiniano (Omar), e Yuval Adler, israelita (Belém). A tensão que cada um deles espelha, procurando não tomar partido por qualquer dos lados, inspira-se numa realidade que se mantém inalterada há décadas: Israel, Gaza e Cisjordânia são protagonistas de um cenário de guerra constante, lenta, mais ou menos mortífera a espaços mas sempre dilacerante nos diferentes territórios. Omar e Belém têm como protagonistas jovens que parecem oscilar entre campos, correndo sempre o risco de serem apelidados de “traidores”. Não só eles. Em Belém, também o polícia israelita que tem um jovem palestiniano como informador, e que com ele condescende, é visto pelos seus pares com desconfiança, como potencial “traidor”. A cada minuto, a cada gesto, todos são postos à prova. Quem é fiável? Quem trai? Neste jogo, o protagonista de Omar ouve a namorada pedir-lhe: “Jura que não é verdade, que não trabalhas para os dois lados.” E numa casa de amigos, já depois de constar que ele pactuava com os israelitas, pedem-lhe à saída: “Omar, por favor, não voltes cá.”

Um só lado, sempre; uma só “razão”. No filme Belém, há um curioso diálogo num zoológico, frente ao espaço dos elefantes. À civil e num passeio familiar, o agente israelita, perto da cerca, comenta em voz alta: “Um elefante, mesmo que voe…” Um cidadão árabe, ao lado, corrige: “Uma cabra, mesmo que voe.” O israelita quer saber o porquê da diferença. O outro explica: “Dois homens viram qualquer coisa no topo de uma colina. O primeiro disse: ‘É um pássaro.’ O segundo disse: ‘Não, é uma cabra.’ Discutiram, pássaro, cabra... Até que o primeiro atirou-lhe uma pedra e ele voou. Então o segundo disse: é uma cabra, mesmo que voe!”

Haverá, um dia, saída deste inferno?     

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