Brasil: no limiar da legalidade

No presidencialismo, não se pode destituir um governo simplesmente porque o seu chefe já não é capaz de construir consensos.

É amplamente conhecida a definição que Winston Churchill uma vez deu de democracia. Para esse político notável, trata-se da pior forma de governo à exceção de todas as demais. É que somente em democracia o povo é soberano para expressar sua vontade política em eleições livres. Só a democracia permite que se estabeleça uma rotatividade no poder, com partidos políticos e grupos de pressão a representar a variedade de vontades que constituem a sociedade. Apenas a democracia permite que carências e necessidades se transformem em direitos - que não são concedidos, mas conquistados pelo conjunto das lutas sociais. Isso significa, na senda da concepção de Churchill, que a democracia não é um regime acabado: ele precisa de tempo e de muitas lutas para ser mantido e aperfeiçoado.

É nesse contexto que analiso a atual crise política no Brasil cuja jovem democracia está prestes a interromper o seu ciclo de aperfeiçoamento. Essa crise pode ser analisada sob diversos primas. Neste espaço, chamo a atenção para um em particular: os perigos da insegurança jurídica. Um sistema juridicamente estável e seguro é aquele que observa, sem reservas, o que dispõem as leis, em especial o que está explícito na Carta Magna, a maior de todas as leis, aquela que expressa a vontade emanada de um Poder Constituinte originário que, no Brasil, se formou em meados nos anos 1980, para marcar o fim de um período negro da nossa história e abrir um novo capítulo nesta odisseia política brasileira.

Várias questões, nos planos jurídico e político da atual crise, são elucidativas de um atentado claro à segurança jurídica no país. A lista de exemplos é longa, mas o principal deles é o que envolve o processo de impeachment contra a Presidente Dilma Rousseff. Aceito como vingança política por um Presidente da Câmara formalmente acusado de gravosos crimes contra o Erário, a principal denúncia contra Dilma é a de que ela cometeu “pedaladas fiscais”. Em bom português, trata-se de um procedimento contábil, no qual o governo determina que bancos públicos façam os pagamentos de recursos de programas sociais. De seguida, o mesmo governo sana a dívida que contraiu temporariamente com os mesmos bancos. É isso e ponto. Correta a postura? Não, certamente, mas jamais suscetível de enquadramento nos chamados crimes de responsabilidade, os quais a Constituição Federal prevê como pressuposto bastante ao processamento e ao eventual afastamento do Chefe do Executivo.

A figura do impeachment de fato está na Constituição e é instituto jurídico relevante, porque permite que os representantes do povo e da federação autorizem processar e julgar um Presidente enredado em crimes de responsabilidade. Não é o caso atual, muito diferente do que ocorreu em 1992, quando o ex-presidente Fernando Collor de Melo era elemento central de um escândalo de corrupção. Em 2016, Dilma Rousseff não é sequer investigada pelos órgãos de controle e investigação. 

Embora reprováveis, as pedaladas também não são crime, porque, em direito, prevalece sempre o princípio segundo o qual nullum crimen sine legis, isto é, não há crime sem lei anterior que o defina. E por lei, entenda-se aqui o texto constitucional expresso, a letra da lei ordinária, e, ainda, a jurisprudência que se constitui em função de decisões anteriores. Ora, não há lei que proíba a realização das chamadas pedaladas, cometidas por todos os demais anteriores presidentes da República e, todos os dias, cometidas por prefeitos e governadores Brasil afora. Não é, portanto, um crime. Outro dado: o Tribunal de Contas da União, órgão parecerista do Poder Legislativo nacional, nunca condenou as práticas. E, por fim, o Congresso Nacional, órgão julgador, aprovou todas as contas dos governos anteriores, mesmo aparentemente estando elas “maculadas” pelas tais pedaladas. Onde está, portanto, o crime de Dilma? Apenas na mente dos que, derrotados em eleições livres, resolveram testar os limites da democracia brasileira.

Em meio a essa vastidão de evidências, incomoda-me sobremaneira o modo como os principais meios de comunicação no país têm tratado essas questões. Nos últimos dias, diversas frases de que “impeachment não é golpe”, proferidas por juristas notáveis, apareceram como manchetes jornalísticas. É evidente que um ministro com a seriedade de Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, só poderia dizer isso mesmo. Eu também concordo com o fato de que o impedimento é um instituto com força constitucional, portanto, não se confunde com golpe. Resta saber, porém, se a pergunta foi feita da forma correta: o impeachment é válido mesmo sem um crime de responsabilidade que o justifique? É provável que o mesmo magistrado, diante de uma questão assim, tivesse opinião divergente.

Ao não questionar a existência desse pressuposto, ao silenciar em face das evidências contrárias à existência de um crime, os meios de comunicação assumem posição e declaram, tacitamente, que Dilma Rousseff deve ser destituída. Assim, vão revisitando episódios ocorridos nos anos 1960 e que, até hoje, fazem milhões de brasileiros gritarem, em palavras de ordem: “o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo!” De fato, quando não discutem as questões, limitando-se a reverberar declarações resultantes de indagações truncadas, os media não contribuem para o esclarecimento público. No máximo tentam aquietar o público no cômodo estado de menoridade de que trata a Aufklärung kantiana.

A posição que reafirmo aqui em nada se confunde com simpatias partidárias, em que pese o meu reconhecimento ao trabalho protagonizado pelo Partido dos Trabalhadores nos últimos anos, que transformou a vidas de milhões de brasileiros e brasileiras, mesmo contra a vontade de elites preconceituosas, que batem panelas contra a corrupção, mas não se indignam com a desigualdade galopante no Brasil. Pouco preocupado com colorações partidárias, sinto-me impelido a defender a democracia e o estado de direito, muito maiores que qualquer partido ou ator político.

É isso o que está em causa. Não confundamos alhos com bugalhos. No presidencialismo, não se pode destituir um governo simplesmente porque o seu chefe já não é capaz de construir consensos. Não se pode derrubar um Presidente porque ele resolveu governar de um certo lado do espectro ideológico, mesmo que isso desagrade e soe traição. Enfim, o único e implacável motivo para o afastamento do mandatário maior na nação, repito, em Repúblicas presidencialistas, e no Brasil em particular, é o cometimento pessoal e doloso de um dos crimes previstos no artigo 85 da Constituição e na Lei 1.079/1950. Dilma não cometeu nenhum deles.

O debate é complexo, formado por múltiplas perspectivas, mas uma coisa é certa: neste momento, o Brasil não vive a iminência do afastamento legítimo de uma Presidente da República eleita; estamos diante da possibilidade de ver o nosso país convolar-se em palco de um Golpe de Estado em pleno século XXI, num cenário triste e decepcionante, mas não completamente estranho a um país com uma cultura política marcada por valores anacrônicos e por uma experiência democrática extremamente prematura: ainda não chegamos à terceira década de democracia e essa já é o nosso período democrático mais longo.

Estamos no limiar da legalidade, confrontados com um embate, sempre histórico, entre a ética e a barbárie. Cabe a nós, democratas, homenagear os que lutaram com as suas próprias vidas para que as nossas fossem mais tranquilas e em liberdade É hora de lhes mostrar que somos gratos/as por isso!

Doutorando em Comunicação da Universidade de Brasília, Investigador do Núcleo de Estudos em Mídia e Política da Universidade de Brasília (NEMP-UnB) e do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20/UC).

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