A União Europeia, 60 anos a reinventar-se

A meu ver, a declaração de Roma proclamada no passado fim-de-semana vai na direcção correcta.

1. Luuk Van Middelaar é um jovem autor holandês que publicou em 2009, no auge da crise financeira que então assolava o mundo, uma obra notável sobre o percurso histórico do projecto europeu. O livro em questão designa-se A passagem para a Europa: história de um começo (tradução livre do título da edição francesa) e alicerça-se numa ideia fundamental: este projecto reveste-se de uma complexidade tal que não pode ser lido e avaliado à luz de categorias históricas e políticas pré-existentes. Além disso, detém uma capacidade de adaptação às circunstâncias verdadeiramente extraordinária, a qual garante a sua permanente renovação e tem vindo a suscitar, por vezes de forma paradoxal, o crescente interesse dos responsáveis políticos e da opinião pública.

O mérito principal deste trabalho ? longo, erudito e exaustivo ? é o de pôr em causa teorias da evolução histórica baseadas no culto de noções tão erradas quanto ingénuas como são as de um progresso linear, de um determinismo fatalista ou de um vanguardismo esclarecido. Se há coisa que a evolução do projecto europeu desautoriza é a desvalorização da acção da liberdade na História. Durante os últimos 60 anos foram vários os momentos em que este projecto enfrentou crises de tal ordem que não escassearam as vozes fúnebres anunciadoras da sua iminente morte. Verdade seja dita que algumas vezes esse risco perpassou, com alguma dose de plausibilidade, num percurso tão marcado pela imponderabilidade e pela originalidade. Não poderia ser, aliás, de outra forma. Facto é que essas dificuldades foram sempre superadas por razões que terão que ver com algo que nem sempre é devidamente valorizado: o surgimento de uma verdadeira consciência europeia no seio das elites políticas, culturais e económicas e a sua progressiva disseminação entre os diversos povos europeus. A ideia de uma Europa unida é muito anterior à constituição da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, instituição que precedeu a Comunidade Económica Europeia consagrada em Roma há precisamente 60 anos atrás.  Essa ideia de Europa, proclamada sobretudo por homens e mulheres da cultura, reclamava-se herdeira de uma longa tradição filosófica, moral e estética legada por épocas diversas, que integrava os mundos clássicos grego e romano, uma parte significativa da Idade Média e os principais contributos da modernidade iluminista. Para esses pensadores a Europa não se dividia entre o Norte e o Sul ou entre o Ocidente e o Leste, já que reconheciam o contributo de grandes espíritos provenientes de cada uma dessas regiões para a afirmação de um ideal europeu.

Se entre as duas Grandes Guerras foram várias as personalidades a preconizar a necessidade da instituição de um projecto político europeu, a verdade é que só depois da 2ª Guerra Mundial se verificaram as condições favoráveis ao surgimento de tal artefacto institucional. Convirá a propósito lembrar que quando falamos de condições nos referimos a uma fecunda associação de convicções, valores, oportunidades e interesses. A dimensão política nunca foi uma espécie de reduto irreal e bacteriologicamente puro. No seu momento fundador, a Comunidade Económica Europeia correspondeu simultaneamente a necessidades pragmáticas experimentadas pelos Estados que a originaram e a valores políticos orientadores da acção dos mesmos. Nos anos 50, o já então determinante eixo franco-alemão assentou em grande parte na necessidade de recuperar o prestígio político e a capacidade económica da França, bem como na idêntica necessidade de reinserção da Alemanha pós-hitleriana na Comunidade Internacional. A partir daí iniciou-se um longo percurso caracterizado por múltiplos avanços e recuos que acabou por conduzir à consolidação institucional de um verdadeiro projecto político europeu.

Este projecto é de tal modo  novo e complexo que extravasa em muito as categorias rígidas do federalismo, do confederalismo ou da intergovernamentalidade. Ao longo dos anos assistimos ao surgimento de mecanismos que articulam sabiamente estas múltiplas formas de relacionamento entre os Estados. No momento presente, por exemplo, apesar do reforço dos poderes do Parlamento Europeu e do alargamento das competências da Comissão em relação a fases anteriores, constatamos uma clara supremacia do Conselho Europeu, fenómeno que parece corresponder, de resto, à percepção da opinião pública.

A meu ver, a declaração de Roma proclamada no passado fim-de-semana vai na direcção correcta. A União Europeia fundamenta-se em três princípios nucleares: a liberdade nos planos político, cultural e económico; a solidariedade entre os povos e os cidadãos; a vontade de promoção da paz. Entre os princípios e a realidade há sempre múltiplos obstáculos que se interpõem e que em cada momento histórico carecem de ser removidos. O que importa é saber se no essencial um projecto político permanece fiel aos seus valores fundadores ou revela demasiada tendência para soçobrar e abdicar do respeito pelos mesmos. Apesar de tudo, mau grado a magnitude das crises que teve de enfrentar ? nomeadamente a crise financeira dos últimos anos ?, a União Europeia tem-se revelado à altura das suas exigentes inspirações filosóficas, históricas e políticas.

2. No momento em que em Roma se celebrava o sexagésimo aniversário do Tratado Europeu, o primeiro-ministro António Costa pronunciava palavras corajosas de confiança no futuro deste projecto. A jovem pitonisa da extrema-esquerda anti-europeia portuguesa extasiava-se em declamações anunciando a morte desta Europa. Entretanto, o Partido Comunista prosseguia tranquilamente a sua campanha pela saída de Portugal da Zona Euro. Façamos um pequeno exercício: coloquemos numa ordem sequencial as declarações sobre a Europa de Costa, Catarina e Jerónimo. A seguir introduza-se a voz de um qualquer desses cinzentos porta-vozes que se habituaram a fazer o elogio da “geringonça”. O que temos como resultado final? Uma fantástica cena felinniana que provavelmente nem ao génio de Fellini teria ocorrido.

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