O processo de “erdoganização” em curso

Já tínhamos o Czar, faltava-nos o Sultão. Não apenas com o tradicional peso das nações e do nacionalismo, mas desta feita com um programa ideológico que visa destruir a dimensão liberal das democracias ocidentais.

1. Quando Erdogan emergiu na paisagem política turca, logo suscitou sentimentos de ambivalência. Por um lado, depois de décadas de um regime de laicidade, muito garantido pela mão forte dos militares, foi percepcionado como uma ameaçadora erupção da islamização crescente da sociedade. Por outro lado, pelos seus desígnios moderados, foi percebido como uma oportunidade de fazer casar o islão com a democracia. É bem verdade que aqueles que conheciam a realidade turca de há muito sentiam um recrudescimento do afã e do zelo religioso dos turcos, designadamente nos distantes recantos da Anatólia, mas em geral nas zonas rurais e na cintura exterior das grandes cidades. E Erdogan, apesar de ter presidido aos destinos da cidade de Istambul – de longe, a mais cosmopolita, ocidental e aberta da Turquia –, soube interpretar e compreender o potencial político desse movimento de assunção pública gradual e progressiva das raízes religiosas.

Os primeiros sinais que foi dando foram sinais positivos. Não escondendo a vontade de romper com os rigores da laicidade vinda do kemalismo e do seu braço militar, parecia também mostrar que nada impedia uma sã convivência dos valores religiosos do islamismo com a democracia plural e aberta, religiosamente tolerante, típica do Ocidente. De algum modo, foi deixando pistas de que assim como na Europa ocidental se havia desenvolvido uma corrente conservadora e social inspirada na doutrina social da Igreja (ou das igrejas) – a democracia-cristã –, também nos países islâmicos havia cabimento para uma ideologia inspirada nos valores islâmicos de recorte moral e social.

2. Esta visão de criação de uma corrente ideológica, plenamente respeitadora dos cânones da democracia liberal e amplamente inspirada em valores do islamismo, foi fortemente corroborada pela vontade formal e oficialmente expressa de adesão da Turquia à União Europeia. A partir desse momento, Erdogan parece fazer da plena democratização da Turquia um desígnio político fundamental. A Europa, ao aceitar a ideia da adesão e encetar as negociações, confiou nesse desígnio e criou no seu interlocutor fundadas expectativas de uma história de sucesso. Ainda hoje são muitos os turcos (e não só) que justificam o afastamento da Turquia com a frustração das suas mais elementares expectativas e o ruir das suas esperanças. Com efeito, do lado europeu, podia já ver-se, nas entrelinhas de muitas declarações e nos sobrolhos de algumas faces, um estado de reserva mental. À boca pequena, eram muitos os que não acreditavam na possibilidade de a Turquia vir a ser membro de pleno direito da União e não eram menos os que, em caso algum, desejavam que ela fosse. Em particular, entre responsáveis franceses e alemães, a ideia da adesão da Turquia era olhada com grande incómodo e com evidente cepticismo. Do lado de Ancara, também nunca se percebeu exactamente se o processo negocial era um jogo de sombras e de espelhos de Erdogan ou se, ao invés, chegou a ser uma vontade genuína. O certo é que, ao fim de um par de anos, quebrou-se o encanto mútuo e a boa vontade cedeu o lugar ao ressentimento, à desconfiança, à paralisia. Só o drama dos refugiados e as dificuldades de gestão do seu fluxo permitiram uma trégua equívoca.

3. Convém notar que nesse processo de arrefecimento há culpas de ambos os lados. Na verdade, ao longo do tempo, Erdogan foi musculando mais e mais o regime e a sua personalização. A cada ano que passava, mostrava mais apetite pela domesticação da imprensa e dos tribunais, pela canibalização da oposição, pela vertigem de alterações constitucionais de sentido ditatorial. O afastamento não residia, pois, numa disposição unilateral dos europeus; ele convergia com uma consistente “erdoganização” do quadro político turco, absolutamente incompatível com qualquer inserção na UE. Já não era só a sempre problemática questão curda; já não era a profunda assimetria económica; era agora a própria concepção de democracia. Os alarmes soaram dramaticamente quando Erdogan salta do posto de primeiro-ministro para o lugar de chefe de Estado e quer com isso presidencializar o regime. Com este passo, cai a máscara e já não subsistem quaisquer dúvidas sobre as intenções de, com novas e modernas vestes, regressar ao sultanato. As suspeitas reiteradas de nepotismo que levaram a incómodas demissões no seu perímetro de proximidade ou a construção de um mastodôntico palácio – num arroubo de Versalhes – são sintomas de uma imparável fulanização do poder. Esta transformação tornou-se irreversível a partir do pretenso “golpe de Estado” do ano transacto, em que já não resta nenhuma das fundações ou até dos simples tijolos de uma democracia liberal. E, bem ao contrário, faz curso e furor a instalação de uma democracia iliberal, à maneira de Putin, que basicamente redundará, na mais benigna das hipóteses, numa “ditadura da maioria”.

4. Assumidos os novos desígnios, Erdogan cavalga o “nacionalismo” mais despudorado. E esse “nacionalismo” passa, à semelhança de Putin, pela instilação do revanchismo contra a Europa e os valores demo-liberais ocidentais. A inflamação das comunidades turcas em solo europeu e a diabolização dos dirigentes de vários Estados da União faz parte dessa táctica “nacionalista”. Erdogan apoda os europeus de “nazis” e “fascistas”, usando métodos que mimetizam a propaganda que pautou o arranque desses mesmos regimes. Para lá dos insultos, faz ameaças, em jeito de retaliação e vingança, que insinuam uma eventual invasão de refugiados ou até a eclosão de actos terroristas. Cimenta e incendeia as suas hostes; ajuda e incita os radicais xenófobos da Europa. Já tínhamos o Czar, faltava-nos o Sultão. Não apenas com o tradicional peso das nações e do nacionalismo, mas desta feita com um programa ideológico que visa destruir a dimensão liberal das democracias ocidentais. Pior parece cada vez mais difícil.

SIM e NÃO

SIM. Papa Francisco. Estes quatro anos são anos de inspiração, de acolhimento, de profecia, de proximidade humana. O mundo, em tempos tão duros, incertos e enigmáticos, é melhor com ele e também por obra dele.  

NÃO. François Fillon. A obstinação em prosseguir a candidatura causa danos graves à democracia francesa, ao sistema partidário, à credibilidade da política dentro e fora de portas.

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