A circular que há-de ser avenida

Deviam exigir à CML, isso sim, que tenha um plano de transportes para a cidade com cabeça, tronco e membros.

Convenhamos que, à partida, a ideia da Câmara Municipal de Lisboa (CML) em querer transformar a Segunda Circular num boulevard é, por definição, impossível: jamais haverá balzaquianas passeando de sombrinha nos passeios laterais, os piropos estão proibidos por lei, os meninos já não sabem jogar ao berlinde, há cada menos reformados debruçados à sueca, quanto mais ao xadrez, e a boule por cá já era. Mas pode vir a ser uma avenida, sim, mesmo que demore uma geração. Mas nunca (já) em 2017.

Como tal, e partindo do princípio que uma avenida é melhor para todos do que uma via rápida, no sentido em que a primeira convida ao ripanço e a segunda faz-nos chegar mais cedo onde sempre haveremos de chegar (lá está a máxima: nem a correr se foge ao destino), não se entende como há quem invoque tudo e mais alguma coisa só para achincalhar uma boa ideia da CML (que só peca por tardia) e tentar matá-la à nascença, antes que a mesma vire “perigosa”, impedindo-a de criar raízes junto dos mais aceleras ou daqueles que nunca deviam ter tido carta de condução, quanto mais um carro.

Há argumentos caricatos, desde logo um da associação de pilotos, segundo o qual as árvores que a CML quer plantar na Segunda Circular vão implicar mais pássaros e os aviões podem cair (como se por esse mundo fora não houvesse bosques e florestas junto a aeroportos e… aves). Há também quem afirme que as raízes das árvores vão provocar lombas no asfalto de tal envergadura que delas resultará uma espiral do estoiro. Já para alguns taxistas a “requalificação da Segunda Circular não vai resolver nada”. Concordo: não vai resolver o autêntico roubo à mão armada que cobram a quem chega ao aeroporto, nem a usual má criação de quem presta o serviço.

Mas a “peça” mais impagável vem dos lados do Automóvel Clube de Portugal (e que saudades de César Torres), onde, em vez de se preocuparem com o facto de haver cada mais cartas de condução emitidas e menos condutores que as mereçam ter, ou com o facto de as infracções serem mais que muitas e zero, a pedagogia feita pelo clube igual, ou de estarmos todos atolados em carros e o nosso gap para as cidades mais evoluídas ser gigantesco; se apelida de “louca”, “surrealista” e “faraónica” (!) a obra anunciada pela CML, e promete accionar os tribunais se a mesma for avante (risos).

Resumindo, estão os mesmos unidos e contra a redução de velocidade na Segunda Circular, a arborização do separador central e o aumento da mesma nos passeios laterais. Estão contra a diminuição da largura das vias e a eliminação das saídas, hoje injustificadas, e até contra o novo piso que a CML anuncia, imagine-se. Confundem surreal com irreal. Atacam a consultora que sustenta a ideia e a quem veneraram noutras circunstâncias. Invocam o bom do Edward Aloysius Murphy. Estão contra a urbanidade e o silêncio, vá-se lá saber porquê.

Deviam exigir à CML, isso sim, que tenha um plano de transportes para a cidade com cabeça, tronco e membros (desde logo, afirmam os especialistas, “uma avenida pressupõe ligações pedonais fáceis entre os seus lados e não propriamente pontes, pressupõe a contenção de tráfego nas vias penetrantes, para protecção das zonas mais frágeis da cidade, a implementação a sério das zonas 30km/h” e nada disso existe na ideia), e que o dinheiro, que sempre se anuncia como pouco (pelo menos para coisas estruturantes da cidade), seja aplicado de forma eficiente e não casuisticamente, como é o caso sempre que se faz uma grande obra.

Ou que exijam à CML, em matéria de árvores, igual empenho para o maltratado arvoredo de alinhamento (e não só) na cidade, que continua a ser abatido sem nexo nem causalidade, antes porque sim (ex. o abate recente da tipuana de grande porte junto à sede do ACP…).

Por isso, esta ideia de arborizar maciçamente a Segunda Circular (e há que escolher muito bem as espécies arbustivas e arbóreas…), sendo boa, pode revelar-se contraproducente se for apenas para embelezar aquela chaga na cidade. Se não se conseguir reduzir significativamente a velocidade de circuito de velocidade, a sinistralidade, os atropelamentos, o ruído, enfim, o terceiro-mundismo da via rápida mais conhecida da capital.

Dadas as boas-vindas à ideia da CML, fica ainda um duplo alerta: os períodos do “pára-arranca” são relativamente pontuais na Segunda Circular e a maior parte dos acidentes resulta de termos condutores encartados indevidamente, à custa da “enésima” tentativa e da respectiva receita para quem a propõe e emite.

Fundador do Fórum Cidadania Lx

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