Testemunho sobre Jorge de Mello

Conheci o sr. Dr. Jorge de Mello, quase que o poderei dizer, por acaso.

Há circunstâncias na vida que parecem determinantes de factos, e assim aconteceu. Eu era nessa altura em Junho de 1961, um ainda jovem Capitão de Cavalaria, que embarcara no navio "Príncipe Perfeito". Tinha sido mobilizado para Angola onde em Março se tinham iniciado movimentos de subversão que viriam a prolongar-se por longos anos.

O navio fazia a sua viagem inaugural e a bordo, além dos militares de várias unidades também mobilizados, e dos passageiros normais, seguia um grupo distinto que nos pareceu ligado à Companhia Armadora.

Desse grupo fazia parte um amigo meu muito intimo, de quem guardo saudosa memória e que me apresentou ao Sr. Dr. Jorge de Mello, um dos principais accionistas e administrador do Grupo CUF.

A vida a bordo aproxima muito as pessoas. Os momentos de preocupação que então se viviam e o motivo que levara ao embarque de muitos dos que seguiam nessa viagem trouxe, naturalmente, um relacionamento que, a pouco-e-pouco, se foi acentuando.

Do Sr. Dr. Jorge de Mello não poderei dizer que fosse muito comunicativo. Era talvez mesmo um pouco reservado, mas de uma extrema correcção, onde a cerimónia e a delicadeza sobressaiam.

Comandava o “Príncipe Perfeito”, nessa viagem inaugural, o Sr. Comandante Cima Barreiro, experimentado e muito considerado Oficial da Marinha Mercante. Era frequente o seu contacto com o Sr. Dr. Jorge de Mello a quem ia informando sobre o decorrer da viagem. O navio pertencia à Companhia Nacional de Navegação, uma das Empresas do Grupo CUF, sendo portanto natural essa prestação de informações que o sr. Dr. Jorge de Mello acolhia com interesse.

Poucos dias após a partida, surpreendeu-me ouvir um seu pedido ao Sr. Comandante Cima Barreiro. Creio que o posso recordar quase na íntegra: “Sr. comandante, seguem a bordo militares que vão mobilizados para Angola. Vão em defesa da Pátria. Se fosse possível, sem quebra das normas de vida do navio, gostaria que fossem tratados com particular atenção e interesse.”

E foi assim que os militares passaram a ter quase um estatuto de "VIP".

A minha surpresa baseava-se apenas na matéria delicada como, por um lado se respeitava o comando do navio, e por outro, se preocupava com as atenções especiais para com os militares.

Tive oportunidade de verificar, ao longo dos anos, que o sr. Dr. Jorge de Mello era de facto assim: acentuadamente humano no contacto, sobretudo com os mais humildes, era escrupulosamente respeitador das hierarquias, mesmo em relação às que lhes estavam directamente subordinadas.

Quase no final da viagem pude confirmar que para além destas apreciáveis qualidades, uma outra as completava: o seu zelo pelos interesses das Empresas. Vale a pena referi-lo. Uns dias antes de chegar a S. Tomé, na rota para Luanda, o Sr. Dr. Jorge de Mello tinha programado naquela Ilha uma visita à Roça Água lze, também propriedade do Grupo CUF, e pela qual nutria particular interesse. Convidara para essa visita vários dos seus acompanhantes e notava-se o seu entusiasmo à medida que o navio se ia aproximando. Tudo parecia decidido e seria natural que assim viesse a acontecer.

Mas na véspera, à noite, quase que numa reflexão introspectiva, falando com o Sr. Comandante Cima Barreiro e comentando a visita do dia seguinte a Água Izé, perguntou-lhe: "Sr. Comandante, quanto tempo ficará o navio fundeado em S. Tomé?" Respondeu-lhe o comandante: “O tempo necessário para que o Sr. Dr. possa fazer a sua visita.” O Sr. Dr. Jorge de Mello precisou: “Mas quanto tempo necessitará de ficar para tomar carga?" O comandante informou: “Serão suficientes uns três quartos de hora a uma hora, mas ficaremos o tempo necessário para que o Sr. Dr. possa realizar a sua visita a Água Ízé, até porque, sendo esta a primeira viagem do navio, não é rigoroso o cumprimento de horários."

Nitidamente contristado o Sr. Dr. Jorge de Mello respondeu-lhe: “Sr. comandante, fica cancelada a ida a Agua Izé e seguiremos para Luanda." Insistia o Comandante Cima Barreiro para que assim não fosse, mas a decisão estava tomada. Para o Sr. Dr. Jorge de Mello os interesses da Companhia estavam acima de tudo. E seguimos para Luanda logo que foram terminadas as operações de carga.

Pude testemunhar estes factos pessoalmente e pude também confirmá-los pela vida fora.

De facto, uns anos depois, tendo eu passado á situação de reforma por incapacidade física para o serviço activo, ingressei no Grupo CUF. Inicialmente, nas fábricas do Barreiro, fui depois transferido para a Tabaqueira, onde permaneci uns 10 anos como director residente.

A Tabaqueira era uma empresa industrial modelo de agrupamento humano habitando um bairro construído pela Caixa de Previdência da CUF, em que as rendas eram apenas simbólicas e trabalhando numa fábrica onde as mais elementares condições de trabalho, de segurança, e de comodidade, tinham sido observadas.

Do complexo faziam parte um posto médico, com assistência permanente de pessoal de enfermagem, e com consultas médicas diárias por médicos de algumas especialidades, para além do médico de medicina no trabalho.

Anexos ao bairro situavam-se a creche, dirigida por uma directora com o curso de enfermagem e onde, além de uma médica pediatra e de enfermeiras em permanência diária, havia educadoras de infância e auxiliares de educação, que tratavam e acompanhavam uma numerosa população infantil das 08h00 às 20h00.

O Centro Cultural, com magníficas instalações a que não faltava um cinema construído com todos os requisitos de uma moderna casa de espectáculos, era superiormente dirigido por uma directora formada em direito, que procurava promover e desenvolver o nível cultural de toda a população do bairro. A capela, de moderna construção, integrava-se no complexo do centro.

A vida desta comunidade pacata, talvez por ser relativamente fechada, apresentava um nível de desenvolvimento superior ao da região.

Era assim em geral a preocupação do grupo CUF: proporcionar aos seus colaboradores, desde o operário menos qualificado ao quadro mais elevado, as melhores condições de trabalho, de desenvolvimento e de vida.

A vinda frequente de especialistas altamente qualificados a ministrar cursos de formação, e a frequência no estrangeiro em estágios ou cursos diversos, distinguiam o Grupo CUF como um grupo industrial de vanguarda, conhecido e respeitado no mundo de actividades similares. A preocupação do desenvolvimento e da formação, em muitos casos considerada em formação permanente, tornavam o Grupo CUF, algumas vezes, um centro de procura de trabalhadores para outras empresas a quem não pesavam os custos de formação, porque a não tinham.

E quando um dia apontei esse inconveniente ao Sr. Dr. Jorge de Mello, ele corrigiu-me, dizendo que não era um inconveniente, mas sim uma vantagem, pois se o Grupo CUF pudesse contribuir para o progresso e desenvolvimento de outras empresas, estava contribuindo para o desenvolvimento do País.

Não posso deixar de referir ainda, no campo social, a distribuição de acções da Tabaqueira pelos seus trabalhadores, como símbolo e fim da sua participação na empresa, e que só não resultou porque a procura de um lucro fácil e imediato, levou a maioria dos trabalhadores a transacciona-las logo que se deram conta da sua valorização.

Assim findou uma experiência piloto que poderia talvez ter sido extensiva a outras empresas do grupo, mas que aqueles que dela beneficiaram não souberam merecer.

Era assim o Grupo CUF. Respeitado e considerado além-fronteiras, era procurado por grupos estrangeiros, como a Mitsubishi, cujo Presidente do conselho de administração se deslocou propositadamente a Lisboa para com a CUF formarem a Fisipe.

E assim era o Sr. Dr. Jorge de Mello, que, com os seus irmãos, geria um grupo de Empresas modelar, onde as realizações sociais eram preocupações suas, e onde se considerava também como importante acção social a criação de novas fontes de trabalho.

Mas os ventos e as mudanças da nova ordem que se instalaram em Portugal, não permitiram que assim continuasse a ser...e Portugal ficou mais pobre.

Texto escrito a propósito da morte de Jorge de Mello
 
 
 

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