Garland: uma empresa portuguesa gerida por ingleses há 240 anos

É uma das cinco mais antigas em Portugal, tem gestão familiar e cunho de ingleses. A Garland foi fundada em 1776, depois de uma tempestade desviar um navio carregado de bacalhau. Atravessou invasões, uma revolução e inúmeras crises.

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Bruce Dawson, de 71 anos, está há 50 na Garland e é presidente do conselho de administração Nelson Garrido

Bruce Dawson tem 71 anos, 50 dos quais a trabalhar na Garland. Durante 25 anos viu o pai na presidência da empresa. Os outros 25 foram passados já a ocupar o lugar de presidente executivo da empresa, que começou como um posto de compra e venda de bacalhau e hoje é um dos maiores grupos nacionais na área da navegação, da logística e dos transportes. 

Quando Bruce Dawson chegou à empresa, em 1966, a Garland não tinha mais do que 50 trabalhadores. Meio século depois, o número de colaboradores directos e indirectos ultrapassa os 500 e o grupo fundado em Portugal por Thomas Garland (um ano depois de ter atracado na costa portuguesa devido a uma tempestade que lhe desviou um barco carregado de bacalhau fresco proveniente da Terra Nova) já foi abrir escritórios em Espanha e em Marrocos, e tem até uma empresa no Chile. Com gestão familiar, a Garland é hoje uma das cinco mais antigas empresas em Portugal, com tantos anos como os Estados Unidos têm de nação, e teve sempre gestão inglesa. “Mas impostos sempre pagos em Portugal”, diz Bruce Dawson.  

O gestor acaba de deixar a presidência executiva do grupo e vai inaugurar um cargo na organização da Garland, o de presidente do conselho de administração, que terá funções não executivas. Fala português escorreito com um sotaque britânico a denunciar-lhe as origens, ao mesmo tempo que em poucos minutos de conversa deixa escancarado o orgulho que sente por estar à frente de uma empresa em Portugal, com clientes em todo o mundo. A Garland registou em 2015 um volume de negócios de 109 milhões de euros, mais 11,2% que em 2014. A área de transportes e logística é o core business do grupo, representando cerca de 55% da facturação global.

No passado dia 4 de Junho, numa festa particular em que reuniu os cerca de 240 colaboradores directos do grupo, anunciou o seu sucessor. O novo presidente será um Dawson — irmão de Bruce. Tirou o curso de Gestão no Canadá, esteve a trabalhar como agente de navegação em Roterdão, na Holanda, começou a trabalhar em Portugal em 1973, depois foi para Londres montar uma empresa. Regressou à Garland em 2003 e hoje é, a par do irmão, um dos mais velhos numa organização em que 70% dos funcionários têm menos de 45 anos. “O Peter tem a sorte de ser sete anos mais novo do que eu”, brinca o presidente cessante.

O humor é britânico. A tenacidade empresarial e a resiliência são características de um ADN que, em 240 anos, passou por quatro gerações de Garlands e vai agora para a quinta geração de Dawsons. Nota-se que nos movimentos de sucessão na Garland tem sido dada prioridade aos elementos da família. “Mas não há nenhum problema em ter administradores fora da família, nem presidentes”, diz Peter Dawson.

De tea boy a presidente

A história da passagem da presidência de um Garland para um Dawson também merece ser contada. “O meu bisavô chegou a Portugal depois de ter fugido da escola, em 1866”, já a Garland estava quase a chegar ao primeiro centenário, conta Bruce. Tinha então 16 anos, fugiu do colégio interno e meteu-se clandestino no porão de um navio. “Foi um aventureiro. Chegado a Portugal, viu um anúncio da Garland e pensou: é um nome inglês, vou lá pedir emprego. E conseguiu. O Sr. Garland contratou-o como tea boy, com a função de lhe preparar o chá todos os dias, impreterivelmente, às 16h15”. 

Como é que o tea boy chega à presidência da empresa? Com trabalho. E talento. “Em primeiro lugar foi obrigado a regressar a casa e a terminar os estudos. O Sr. Garland viu no jornal que o meu bisavô tinha fugido de casa. Mandou-o embora, mas escreveu aos pais a dizer que ele era boa pessoa e bom profissional, e que lhe daria emprego quando regressasse”. Assim foi. 

Se a regra da sucessão não é rígida, a de só permitir dispersão de acções por quem trabalha na empresa é. “No momento em que um accionista sai da empresa, tem de entregar as suas acções a quem fica. Não queremos acções espalhadas por aí. Quem não trabalha cá pode cair na tentação de só pensar em dividendos. E o importante é pensar em investimentos e em crescimento”, relata Bruce Dawson.  O investimento feito na empresa nos últimos 15 anos atinge os 20 milhões de euros. “A não ser na área imobiliária não temos dívidas à banca. É tudo feito com os nossos recursos, com o lucro que conseguimos”, explica.

Com recursos e com alguma audácia. Depois da revolução de 1974, viram muita gente fugir de Portugal, rumo ao Brasil. “Nós estávamos determinados a ficar em Portugal. Pensámos que o que tínhamos de fazer era investir”, explica o presidente. Construíram as instalações que hoje são sede da empresa, em Abóbada, e seguiram para a compra das primeiras instalações a norte. Em 2011, na ressaca da crise dos mercados financeiros e do anunciado resgate, avançaram com o investimento do Centro logístico da Maia, uma obra inaugurada pelo Presidente da República em 2012 e que recebeu um prémio de construção do Salão Imobiliário de Lisboa. “Não posso dizer que não estava nervoso porque tínhamos os 12 mil metros quadrados de armazém, com 13 metros de altura, e só três mil metros quadrados ocupados”, recorda Bruce. 

Hoje em dia, a área logística é aquela que mais tem contribuído para o crescimento. Em apenas três anos, a Garland passou de 7000 metros quadrados de armazém para 60.000 metros quadrados, com instalações na Maia, em Gaia (recuperou as instalações da falida fábrica Yazaki Saltano), na Abóbada (em Cascais, onde tem a sede) e na Mealhada (nas instalações que eram do grupo Alves bandeira, com quem firmou uma parceria). Todos os centros logísticos já estão 100% ocupados.

De acasos em acasos, a longevidade da Garland cruza-se, e confunde-se várias vezes, com a história da Europa e do mundo. Viveu na Monarquia e na República, atravessou invasões e revoluções. Imprimiu moeda: em 1848 torna-se uma das únicas três empresas portuguesas a ter autorização do Banco de Portugal para imprimir notas bancárias. “Uma pena esse negócio ter sido nacionalizado. Dava-nos um jeitão agora, não nos preocupávamos com mais nada”, brinca Bruce Dawson. 

Em 1866, a Garland impõe-se como agente de navegação, ao ter conseguido o feito irrepetível de ter os 20 principais armadores do Porto de Liverpool a assinar uma carta que colocava a Garland com o exclusivo do agenciamento das suas mercadorias. “Não foi logo um bom negócio. Nos primeiros 20 anos não veio um único navio a Portugal”, sorri Bruce Dawson. E o primeiro que veio, começou por expulsar o Dawson que lhe subiu a bordo. “Era o meu bisavô. Queriam expulsá-lo, nunca tinham ouvido falar da Garland. Mas ele foi buscar a carta assinada há 20 anos e eles disseram: ‘Está assinado, está assinado’. Naquele tempo, um compromisso tinha, de facto, valor”, relata o presidente. 

Foi na Segunda Guerra Mundial que a empresa começou a ganhar força na sua componente de transitário marítimo e ferroviário. Em 1939 Portugal era um país neutro, a Garland Laidley (era assim que se chamava na altura) representou em Portugal os interesses do Ministério da Marinha britânico e do Secretariado Naval Americano, sendo também a representante oficial do ministério britânico do Abastecimento e Agricultura e da secretaria de Estado suíça dos Transportes. Resultado: mais de 200 despachantes a trabalhar para dar seguimento a toda a carga. “Portugal era um hub, recebia cargas de todo o lado”, comenta Peter Dawson.

É a localização privilegiada de Portugal que alimenta o optimismo. “Um dos maiores bens que Portugal tem é a sua Costa Atlântica. Coloca-o mais perto da Europa do Norte e da Africa, dos Estados Unidos e da América do Sul”, recorda. Mas a experiência tem-lhe mostrado que o que poderia ser uma vantagem também pode ser “uma tragédia”. “O tempo que se perdeu com Sines foi uma tragédia. Demorou mais de 30 anos a começar a trazer contentores para aquele porto! Entretanto, perdemos a oportunidade para Barcelona e Algeciras”, acusa. 

O caso do Porto de Lisboa e do conflito entre operadores e estivadores também lhe tirou o sossego. No primeiro ciclo de greves, perderam uma linha que nunca mais voltou. No último, tiveram uma linha suspensa e muitas outras ameaças de desistência. Este primeiro semestre deverá levar a impactos negativos da facturação da Garland, na componente de navegação, em cerca de 20%. 

“Este foi um ano difícil, com desafios. Mas crise, crise, deve ter sido a que se viveu no tempo da transição da Monarquia para a República”, afirma o presidente da empresa. “Quantas crises houve desde 1776?”, questiona, para relativizar os receios com os problemas que cada geração de Garlands e de Dawsons teve de enfrentar. 

Agora, é a vitória do “Brexit” que lhe trouxe maiores surpresas. “Parece que o Reino Unido vai ter de ceder num dos seus dois objectivos de saída da União Europeia. Ou cede na liberdade do comércio entre o Reino Unido e a União Europeia ou cede no objectivo de travar a livre circulação de imigrantes. Ter os dois não me parece viável”, estima Bruce Dawson. Sobre o impacto directo na Garland diz que, ainda assim, não será muito significativo. 

Depois de anos sucessivos a crescer a dois dígitos, o ano de 2016 deverá fechar com um desempenho mais modesto mas positivo. A Garland especializou-se na carga contentorizada a granel e, na área da logística, são os serviços integrados de gestão de stocks, distribuição, e etiquetagem que lhe traz mais-valia. Uma das áreas fortes e distintivas do grupo é a secção de “pendurados” — a roupa que está em cabides dentro de um contentor.

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