Uma comovente lição de carpintaria no Bons Sons

Este festival é uma lição em humildade: vamos lá para aprender que todos juntos valemos mais, que o povo unido poderá não ser vencido. Também houve concertos, note-se.

Carminho em concerto no domingo à noite
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Carminho em concerto no domingo à noite Cortesia: Festival Bons Sons/Carlos Manuel Martins
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White Haus Cortesia: Festival Bons Sons/Carlos Manuel Martins
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Dear Telephone Cortesia: Festival Bons Sons/Carlos Manuel Martins
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O público num dos concertos do final da tarde Cortesia: Festival Bons Sons/Carlos Manuel Martins
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Isaura Cortesia: Festival Bons Sons/Carlos Manuel Martins
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Tim Tim por Tim Tum Cortesia: Festival Bons Sons/Pedro Sadio

Estava frescote na aldeia de Cem Soldos, lá pelas onze e tal da noite de domingo, um ventinho que arrepiava quem se esquecera de casaco, de modo que aquela linha de baixo vinda do palco, robusta mas sem celulite, era o que o povo precisava: mesmo no final da terceira de quatro noites, o festival Bons Sons conhecia o efeito-estufa dos White Haus, em que disco-sound robótico e funk minimal se unem numa comunhão sensual promovida por máquinas quentes.

Se a ideia deste festival é levar as gentes da urbe a experimentarem a aldeia, ao mesmo tempo que expõe os aldeões aos sons da contemporaneidade, então tarefa cumprida. Na fila da frente da banda do Porto havia jovens vindos da capital, crianças da zona e um velhote que observava com espanto o palco até que o corpo cedeu à cadência e foi apoderado de movimentos que poderíamos chamar dança.

Foi dos mais belos momentos de um festival que consegue, num só dia, apresentar fado que já não é fado (Carminho), rock psicadélico negro (Keep Razors Sharp), electrónica que cruza fado com tango (Fandango) e uma espécie de derivação de XX se estes fossem liderados por Sade (Isaura). Um festival cuja noite de domingo acaba com a electrónica de Branko, mas que no dia anterior conhecera uma nova estrela na pele do bombo de Tiago Pereira. Um festival que enche uma praça para o festival de percussão dos Tim Tim por Tim Tum e que todos os dias proporciona um concerto para crianças às dez da manhã. Ecletismo é isto.

Carminho, a estrela

Ecletismo, contudo, não é o segredo dos enormes White Haus: claramente possuidores de uma belíssima discografia, sabem onde ir pilhar, mas pilham de forma selectiva (e com bom gosto e inteligência): a motorika, as lições de geometria dos Silver Apples, maxi-singles de disco-sound da época em que este descobriu as maravilhas da repetição, a colecção completa da Italians Do It Better, esta é a geografia musical que delimita este festival de linhas de baixo, camadas de sintetizadores e um inegável talento para pôr as gentes a dançar. É, de certa forma, o mesmo cosmo criado pelos LCD Soundsystem,mas não se trata de plágio – é normal nos quarentões que cresceram com o punk acabarem por se apaixonar pela música de dança e darem por si babados quando encontram um single dos Konk na Feira da Vandoma. Cada tema repete a linha de baixo, há duas percussões num processo de incrementação crescente e a dada altura o ritmo enche o público como uma barragem que cede à natureza. Apetece agradecer por este tareião.

Hora e meia antes Carminho mostrara porque é hoje em dia uma estrela. A capella é capaz de aguentar um tema inteiro e silenciar aquele auditório natural. Antes contara a história do dia em que Marisa Monte lhe falara de uma versão (magnífica) que os Secos e Molhados faziam do vira.

“Mas sabem o que é que é engraçado?”, perguntou Carminho. O público não sabia. “É que não é música tradicional brasileira, é um rock.” E saiu um belo aparentado de rock, um rock desviado, um rock afadalhado, um rock-Variações em que Carminho demonstrou que a sua voz vai mais longe do que casas de fado, chega ao Minho, vai ao Brasil e volta. Ou vira.

Antes ela presenteara quem a ouvia com Bom dia, amor (carta de Maria José), cuja letra é de Pessoa, tremendo presente, diga-se, com drama mas sem procurar a tragédia de forma gratuita. Torna-se claro que o fado português ultrapassou os seus traumas, já não se importa em ser ordeiro e experimenta a gosto.

Carminho trajava de negro e dourado e no fundo a sua fatiota é a melhor imagem do que é o fado: o ouro que se descobre no fundo do negrume. Com Maria José conseguiu que uma história triste provocasse esperança e, se isso não é bonito, então algo andará mal neste mundo.

Um homem ao nosso lado traduziu com precisão o sentimento que a voz de Carminho tantas vezes provoca. “Foda-se”, disse com veemência o senhor de pólo azul, cigarro na mão à espera que ele se lembrasse de fumar. Retomou a argumentação: “Esta tipa é  genial.” Foi também para isto que se inventou a língua portuguesa.

Uma adenda: à hora a que escrevemos isto, durante a tarde de segunda-feira, último dia do festival, os Desbundixie tocam em frente à Igreja: banjos e metais em dança graciosa, o povo na maior paz a fruir deste belíssimo som americano, velhotas sentadas à porta muito atentas. Mesmo quem trabalha tem a vaga sensação de estar de férias: que paz é esta que não se encontra na cidade? Ninguém se empurra, não há zangas, a barraca do gin (construída à mão pelo pai do director do festival) nunca tem filas gigantes e que bem tocam os portugueses Desbundixie esta música nascida na amada América que não é de Trump, é de todos nós. Há uma lição nisto.

A pop sensual de Isaura

Voltando atrás: antes de Carminho, antes de White Haus, houve uma missa no palco Eira, no topo de uma colina com uma soberba vista sobre o astro que domina a nossa galáxia, mesmo ao fim da tarde, quando o poente devolve em dourado o terno calor que esta terra oferece ao mundo. Em cima do palco os Keep Razors Sharp desbobinaram uma torrente de riffs de alto quilate: é o rock’n’roll tradicional filtrado pelo olhar malévolo dos Jesus and Mary Chain ou dos Cramps, riffs e mais riffs e mais riffs, porque o corpo gosta, os ouvidos gostam, a anca gosta, o povo gosta. Fizeram uma versão de Kylie Minogue, citaram mestre Paulo Furtado (mais conhecido por Legendary Tigerman, que andaria por ali) e horas depois, ao jantar, viram um garoto malandro, dos seus seis anos, aproximar-se deles e gritar: “Vocês são os maiores”, antes de fugir, entre o embaraçado e o orgulhoso por ter tido coragem de lhes dizer o que ia no seu pequeno corpo e na sua grande alma. Em quantos mais festivais se vê isto?

Entretanto importa dar uma menção honrosa a uma bióloga de Gouveia chamada Isaura, que tomou o palco Giacometti na tarde de ontem: suportada por bateria, guitarra e sintetizador (às vezes eram duas teclas, quando a guitarra era pousada), mostrou ter uma bela voz para a sua pop electrónica que poderíamos apelidar de sensual, sensualidade que não é forçada, não é procurada, é natural, está na voz, no bom gosto dos arranjos. Dissemos que lembrava XX com Sade, mas qualquer mistura de pop de sintetizadores escura com diva à frente serve de comparação – bem, se calhar não, porque nada aqui lembra os Portishead. Há já meia dúzia de canções imaculadas ali e um par delas podiam muito servir de single. Isaura tem um vozeirão e merece que alguém pegue nela pela mão e lhe explique como criar uma carreira musical. Nem tudo são vitórias e, ao fim da noite, a mistura de tango com fado e electrónica dos Fandango pareceu desprovida de nervo, mais interessante em teoria que na prática.

Ontem Luís Ferreira, director do festival, falava-nos do programa que a terra pretende lançar na escola, em que se tenta “tirar partido da comunidade para melhorar a experiência pedagógica", um projecto em que todos os miúdos se envolvem com a actividade da aldeia.

Isto, esta variedade, a experiência deste festival, e referimo-nos tanto à música como à humanidade que quem aqui vive e quem aqui vem pratica, parecendo que não, também é pedagogia. Para a população de Cem Soldos e para nós, que aprendemos o que é uma comunidade que cria à mão as suas barracas de bebidas. Cem Soldos é isso, uma estranha e comovente lição de carpintaria. Consta que os carpinteiros sabem coisas.

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