O festival Bons Sons não foi um sonho, é uma sempre bem-vinda realidade

Começa esta sexta-feira o festival que faz de Cem Soldos, Tomar, centro do presente da música portuguesa. Por lá passam Deolinda, Jorge Palma, Cristina Branco, Pega Monstro ou Sensible Soccers. Entre as ruas, os largos e as tabernas, a população da aldeia e os forasteiros tornam-se um só.

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MIGUEL MADEIRA

Dir-se-ia que o sonho começou há dez anos, mas isso seria incorrecto para com o espírito do Bons Sons, o festival que é criação e extensão da forma comunitária como Cem Soldos, aldeia às portas de Tomar, encara a sua vida e os seus desejos para a localidade. Talvez em 2006, ano da primeira edição, fosse um sonho para os organizadores (ou seja, toda a aldeia, agregada no Sport Clube Operário de Cem Soldos) que dez anos passados o Bons Sons estivesse firmemente implantado no roteiro de festivais portugueses, destacado pelas suas características únicas e apresentando em cartaz Deolinda, Jorge Palma, Cristina Branco ou Carminho. Ou, pensando melhor, talvez até não se surpreendessem tanto assim: eles sabem que, querendo, há talento e vontade para fazer e que, assim sendo, o que se planeia que aconteça acontece mesmo.

O Bons Sons 2016 arranca oficialmente esta sexta-feira. Quinta-feira, os campistas e o público já alojado nos arredores tiveram direito a recepção com o set DJ de Quem És Tu, Laura Santos? Agora, é tempo para o início a sério. Ou seja, os pórticos de entrada já estarão montados, tal como os oito palcos. As zonas de restauração instalam-se em pátios e as velhas tabernas abrem as suas portas para receber quem chega – e preparam-se para as inevitáveis sessões de cantoria improvisada que chegam noite alta. No Auditório, os projectores estarão afinados para receber as sessões das Curtas em Flagrante (ou os documentários Este Povo, obra colectiva dedicada à população da aldeia, e Auto-Rádio, de Gonçalo Pôla, com o músico Benjamim como protagonista) e o resto que ali se verá (os pianistas Joana Sá e André Barros passam por lá, tal como a bailarina e coreógrafa Vera Mantero, que traz Os Serrenhos do Caldeirão). No Café da Tonita, no Largo do Rossio, centro nevrálgico da aldeia, quem atende ao balcão já estará conformado com a ideia de que, como em todas as outras edições, não verá qualquer concerto – mas não perde pitada da agitação, ou não fosse o Tonita de passagem obrigatória no Bons Sons.

Tudo estará preparado, avancemos, para receber a música. É ela, afinal, que a cada edição do festival faz girar a aldeia de mil habitantes que, em quatro dias, multiplica por dez a sua população. Uma década após a estreia, o festival mantém-se fiel a uma ideia – fazer a programação a partir da música criada em Portugal – que foi sendo aprimorada ao longo do tempo. Em Cem Soldos, temos um retrato abrangente, sem compartimentações estéticas, do que é o panorama musical nacional no ano de cada edição – até 2014, recorde-se, o Bons Sons foi bienal, passando a anual em 2015.

Este é o festival onde podemos ouvir a delicadeza primaveril dos conimbricenses Birds Are Indie e o rock sónico, hoje inescapável, das lisboetas Pega Monstro, com os barcelenses indignu, pós-rock ao serviço de ideias narrativas, pelo meio (os primeiros no Palco Giacometti, os do meio no Palco Tarde ao Sol). Aqui, temos as concertinas cheias de vida dos Danças Ocultas, acompanhados pela Orquestra Filarmonia das Beiras, e a fanfarra da Kumpania Algazarra (estarão no Palco Lopes-Graça). E teremos, no Palco Eira, montado na antiga eira comunitária da aldeia, a pop elegante dos Best Youth e a viagem orgânico-digital dos Sensible Soccers, de olhos nos céus e pés fincados na terra para equilibrar a dança. Tudo isto a 12 de Agosto, o primeiro dia – e ainda há o Alentejo Cantado e a música de cantautor de João e a Sombra na Igreja de São Sebastião, que acolhe o Palco MPAGDP, ou seja, A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria.

Nos dias seguintes, novos reencontros, novas descobertas, o mesmo espírito. Sábado, o groove de Da Chick, a guitarra expressiva de Grutera ou as vozes das Adufeiras do Paúl. E também o fado de Cristina Branco e a tradição portuguesa, reinventada em canção para os nossos tempos, dos Deolinda, repetentes em Cem Soldos, um fenómeno que se inaugura nesta edição – a organização definiu inicialmente que, para não ceder a facilitismos e assegurar total diversidade na programação, só faria regressar bandas à aldeia passados dez anos da sua primeira apresentação no festival. E dez anos depois, eis que regressam, além dos Deolinda, Lula Pena, Desbundixie , D’Alva, Sopa de Pedra, Lavoisier e os supracitados Kumpania Algazarra, Birds Are Indie, Danças Ocultas e Joana Sá.

Domingo e segunda, passarão pelos vários palcos os Keep Razors Sharp, Carminho, Fandango, White Haus ou Dotorado Pro (dia 14); Diego Armés, Golden Slumbers, Jorge Palma ou Tocha Pestana (dia 15) – e os desconhecidos que arriscarem subir ao Palco Garagem na sede do Sport Clube Operário, onde, mediante inscrição, quaisquer elementos do público podem mostrar a sua música a quem se reunir para a ouvir.

Tal como nas edições anteriores, o Bons Sons contempla outras expressões artísticas além da música e do cinema. O Palco Eira, por exemplo, recebe The Great Gig In The Sky, instalação do Colletivo Arcipelago, de Bari, enquanto que no Centro de Exposições podemos apreciar a instalação criada por Luís Antero, artista que vem trabalhando na exposição e na manipulação de recolhas, recorrendo à paisagem sonora de Cem Soldos.

Com bilhetes entre os 17 (diários) e os 38 euros (passe geral) e um orçamento de 450 mil euros, o Bons Sons é montado sem recurso a patrocinadores e mostra-se edição após edição não só um excelente palco para tomar o pulso à criatividade musical nacional, mas também um espaço de encontro e partilha entre a comunidade que o erige e aqueles que, durante quatro dias, vivem a aldeia como sua – uma coisa é indissociável da outra. A verdade é que, depois de lá passarem, todos se tornam cem soldenses honorários. E muito orgulhosos da condição.

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