Wes Anderson abre-se ao mundo que acabou

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Com Grand Budapest Hotel, comédia melancólica numa Europa fantasista de entre as guerras, as “casinhas de bonecas” do autor de Os Tenenbaums deixam entrar a nostalgia de um mundo real. Que talvez só tenha existido no cinema, mas não é menos real por isso.

“Sempre que faço um filme sinto que estou a tentar fazer algo de completamente diferente do que já fiz antes,” diz Wes Anderson, instalado num luxuoso hotel berlinense. Ri-se depois de o dizer, mas não quer que achem que ele está a brincar. “Quando fui fazer à Índia um filme passado num comboio [Darjeeling Limited, 2007], lembro-me de achar que era algo que não tinha nada em comum com o que eu tivesse feito antes. E quando o terminei as pessoas diziam-me que percebiam instantaneamente que o filme era meu. Mas, na verdade, faço sempre um esforço para fazer algo de completamente diferente do habitual...”

Mas e se, desta vez, fosse (mesmo que só um bocadinho) verdade?

Essa é uma questão central de Grand Budapest Hotel, oitava longa do cineasta americano depois de Bottle Rocket (1996), Gostam Todos da Mesma (1998), Os Tenenbaums (2001), Um Peixe Fora de Água (2004), Darjeeling Limited, a animação O Fantástico Sr. Raposo (2009) e Moonrise Kingdom (2012). Grand Budapest Hotel, esta semana nas salas portuguesas, é “mais do mesmo” preciosismo, miniatural e estilizado, que tornou Wes Anderson no mais europeu e autoral dos modernos realizadores americanos? Que fez dele um “guru hipster”, líder de uma geração esteta da qual também fazem parte Sofia Coppola, Mike Mills ou Spike Jonze? (A esse propósito: A. O. Scott, no New York Times, falava de Anderson como um dos raros cineastas americanos capazes de “articular uma visão original e idiossincrática com meios para a exprimir livremente”.) Ou, pelo contrário, Grand Budapest Hotel é o “passo em frente” que propulsiona Anderson para fora da gaveta maneirista/amaneirada em que ele próprio se deixou encerrar, das “casas de bonecas”, sobre famílias mais ou menos disfuncionais? (O mesmo A. O. Scott falava, no mesmo texto, da sua “tendência para decorar e elaborar temas recorrentes em vez de avançar para novas direcções.” E o crítico Glenn Kenny, no site do falecido Roger Ebert, avisa logo: “Não, este não é o filme em que Anderson faz o que o leitor quer que ele faça, independentemente do que isso possa ser.”) Da parte do realizador não vamos ter resposta. No festival de Berlim, onde Grand Budapest Hotel teve honras de estreia mundial em abertura (e acabou por levar para casa o Prémio do Júri), a imprensa presente bem tentou ver se apanhava Anderson na curva, mas ele esquivou-se – preferindo inserir-se numa lógica de continuidade incremental. “Sempre que faço um filme, muitas das coisas que fiz no filme anterior passam para o novo,” diz numa mesa redonda. Exemplifica com os efeitos visuais encantadoramente artesanais de Grand Budapest Hotel, inteiramente feitos com miniaturas animadas fotograma a fotograma. “Sempre adorei miniaturas, mas nunca tinha trabalhado com elas até O Fantástico Sr. Raposo. E não sei verdadeiramente dizer como é que isso se relaciona com a minha experiência de cineasta, ou porque é que prefiro determinadas ferramentas a outras.”

Kubrick no Grande Hotel

A verdade, independentemente do que Anderson diga, é que Grand Budapest Hotel deixa entrar um ar de “mundo real” nos seus universos estanques, saídos, nas palavras do crítico do jornal The Guardian, Peter Bradshaw, “da imaginação de um miúdo de 13 anos brilhante e solitário.” O Grand Budapest fica na estância termal de Nebelsbad, nas montanhas alpinas da República de Zubrowka, “em tempos capital de um império”; a história decorre em 1932, mesmo à beira de uma ocupação por uma potência invasora alcunhada não poucas vezes de “fascista”. A ficcional Zubrowka seria, assim, uma referência mais ou menos velada ao Império Austro-Húngaro que terminou faz agora cem anos, em 1914, com a I Guerra Mundial, mas também à Áustria “anexada” pelo nazismo alemão em 1938. E o filme fervilha com outras referências mais ou menos discretas à região da Boémia, centro civilizacional dos primeiros anos do século XX, e aos últimos estertores de um “mundo que acabou” – ou que, como diz alguém já no fim do filme, “já não existia muito antes de nele termos entrado”.

Anderson viajou pela Europa em busca de um hotel verdadeiro que pudesse usar como plateau, devido à importância do edifício na história, onde é uma personagem de corpo inteiro. Incapaz de o encontrar – “parte do que queríamos criar era a experiência de como era diferente viver num local daqueles, e isso hoje já não existe” – criou o seu próprio num grande armazém abandonado da cidade alemã de Görlitz, na fronteira com a Polónia. A precisão meticulosa e quase obsessiva-compulsiva do seu cinema encontra a vontade, nostálgica mas não serôdia, de recriar um passado idealizado que nunca foi tão abertamente visível num filme seu. Glenn Kenny aponta como Grand Budapest Hotel refina à saturação o estilo geométrico e formalista de Anderson (muitos observadores citam a dívida a Stanley Kubrick, cujo Shining também se passava num hotel; Peter Bradshaw, no Guardian, ousa até lembrar Peter Greenaway) ao ponto de, nas suas palavras, “o seu primeiro filme, Bottle Rocket, parecer um filme de Cassavetes”. Mas essa visão deve, aqui, tanto às obras do romancista austríaco Stefan Zweig, memorialista do esplendor vienense do início do século, como à Europa de Leste recriada na Hollywood pelos emigrados europeus.

A Europa de Hollywood

A história de Monsieur Gustave, o concierge maravilha, e do seu paquete e protegido Zero, um adolescente refugiado de um distante país do Médio Oriente, evoca abertamente os clássicos da alta comédia e do burlesco dos anos 1920 e 1930. A referência central, que Anderson fez questão que todo o elenco visse, foi a Budapeste made in Hollywood de A Loja da Esquina (1940) de Ernst Lubitsch, e não são poucos os que apontam influências de Alfred Hitchcock ou dos irmãos Marx. Talvez, contudo, a referência mais lógica seja outro filme de Lubitsch, Ser ou Não Ser (1942), uma das grandes comédias da história do cinema, que usava a própria II Guerra Mundial como tema. É por aí que a verdadeira Europa do entre-guerras faz a sua entrada no universo do cineasta, que preparou uma “biblioteca” de filmes – que passava também por Frank Borzage ou Ingmar Bergman – entregues aos actores e à equipa como referências para o tom que procurava.

Explica Anderson: “Durante as viagens de preparação deste filme, uma coisa interessante que acabou por entrar na história foi o modo como as diferentes ideologias do século XX foram vividas na Europa; como elas se exprimiam, por exemplo, à nossa frente, arquitecturalmente, ou o modo como as pessoas reagem quando se atribui à política as motivações de uma decisão ou de um modo de falar.” (E, como diz Mark Kermode, do Observer, o cinema de Anderson é, por natureza, arquitectural.)

Daí que Zubrowka transpire, neste ano de centenário da I Guerra Mundial, um ambiente de elegia por uma civilidade (ou por uma civilização?) perdida (aliás directamente abordado num dos monólogos de Monsieur Gustave, num dos momentos-chave do filme). À Viena austro-húngara de Zweig contrapõem-se os totalitarismos (nazi ou comunista) que absorveram a Europa de Leste após 1939 e desfazem a magia precária do Grand Budapest – o imaculado design de produção de Adam Stockhausen não hesita em transformar o requinte Belle Époque de 1932 num funcional e anónimo hotel comunista de 1968. E a inspiração directa na obra de Stefan Zweig, cuja obra é atravessada pela nostalgia de um mundo perdido para sempre, atinge na mouche a melancolia de uma infância passada e irrecuperável que é talvez o grande ponto comum entre todos os filmes de Anderson – ao qual este não seria excepção.

O romance do passado

(Parêntesis. Jeff Goldblum, “repetente” no universo do cineasta após Um Peixe Fora de Água, dirá no dia seguinte, noutra mesa-redonda, que Anderson é alguém de “extraordinariamente romântico”. “Parte do que ele propõe aos actores é o reencontro com algo de profundamente lúdico, de uma inocência que está sempre na origem do desejo de representar de qualquer actor.” Ralph Fiennes, que faz aqui uma estreia de estadão na “família Anderson” - Monsieur Gustave foi escrito à sua medida – concorda. “O filme do Wes fala de um desejo inocente, quase infantil no melhor sentido da palavra, de reencontrar o calor e o conforto de um ambiente de segurança, de deleite, de alegria de quando éramos miúdos... A não ser que tenhamos tido uma infância horrível, penso que todos temos a sensação de que aquele era um tempo de carinho e possibilidade.” Fim do parêntesis.)

Sempre ciente de ser “um estrangeiro na Europa” onde se sente, apesar de tudo, mais em casa (dividindo o seu tempo entre Nova Iorque e Paris), Anderson preferiu criar o “seu próprio livro de Zweig” em vez de adaptar um dos muitos títulos pré-existentes. “Ele consegue criar à nossa frente o mundo em que vive, utilizando uma técnica com a qual consegue lançar um feitiço” – técnica reproduzida na construção em flashbacks, quase de “bonecas russas”, da história. (Mesmo que essa construção de “era uma vez”, com um narrador a guiar os passos do espectador, já estivesse presente em filmes anteriores.) E o realizador não hesita em relacionar a melancolia da infância perdida com o seu fascínio pelo desaparecimento de um mundo do qual Zweig terá talvez sido o melhor retratista. “Ele tornou-se parte de uma cultura que foi sendo refinada ao longo dos anos, que se tornou no centro de Viena, mas que de súbito começou a chegar ao fim. Para ele, foi obviamente uma perda de que não conseguiu recuperar – e é isso que me fascina.”

Que não se espere, no entanto, de Grand Budapest Hotel um statement definitivo sobre o fim de uma época, mesmo que ela perpasse como subtexto constante no filme pelo meio do humor mais ou menos burlesco (voltamos, então, a Lubitsch, mas também aos comediantes do mudo como Chaplin, Keaton ou Lloyd; e, como o crítico Nick Pinkerton aponta na revista Reverse Shot, por vezes é evitando falar abertamente das coisas que melhor se chega à sua essência). Anderson diz, em Berlim, ter-se de algum modo arrependido de ter dito que, ao mesmo tempo que lia Zweig e escrevia o filme, andava a ler o longo ensaio de Hannah Arendt sobre o julgamento de Adolf Eichmann em Israel e Suite Française de Irène Némirovsky, escritora judia francesa que morreu em Auschwitz. Isso teria colocado sobre o filme as expectativas de um “peso” temático que não está lá, mesmo que não enjeite a influência que acabaram por ter. “São livros muito mais pesados, e é muito forçado dizer que este filme tem alguma coisa a ver com eles. Mas estavam na minha cabeça e inevitavelmente houve pequenos detalhes que de algum modo acabaram por entrar no filme.”

É por aí que se pode dizer que Grand Budapest Hotel se abre ao mundo de uma forma que o cinema de Wes Anderson até agora não havia reflectido. Mesmo que ele seja a primeira pessoa a evadir as verdadeiras questões levantadas pelo seu filme, mesmo que todo o seu cinema se ancore na vontade de recuperar a magia de um passado dourado e perdido, Grand Budapest Hotel responde com a compreensão, mesmo que resignada, que o passado foi lá atrás. E que já não volta.

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