Terão naufragado em Omã os primeiros navios de guerra portugueses no Índico?

Equipa internacional diz ter descoberto o sítio do naufrágio de uma nau da frota de Vasco da Gama. Especialistas portugueses não acreditam que se possa dar-lhe um nome, mas dizem que o achado é "extraordinário". É que nunca antes se encontrou uma nau de guerra de D. Manuel I.

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Arqueólogos em escavação na ilha de Al Hallaniya, Omã Cortesia Blue Water Recoveries

O anúncio da descoberta e do estudo de uma nau da frota da segunda viagem de Vasco da Gama à Índia na ilha de Al Hallaniyah, no sultanato de Omã, abriu o debate entre historiadores da Expansão, arqueólogos e outros especialistas. E a publicação de um artigo sobre o espólio recuperado no International Journal of Nautical Archaeology tornou esse debate ainda mais informado. Se antes alguns levantavam aquilo a que chamavam “dúvidas de princípio”, com a cautela própria dos académicos, agora as reservas são mais específicas.

No artigo, assinado por David L. Mearns, director da Blue Water Recoveries (BWR), empresa britânica de salvados marítimos que se associou ao Ministério do Património e da Cultura de Omã para estudar este naufrágio, Bruno Frohlich, antropólogo da Smithsonian Institution, e o arqueólogo David Parham, da Universidade de Bournemouth, no Reino Unido, avança-se como principal hipótese que os materiais identificados pertençam à nau Esmeralda, muito embora se reconheça que ali estão documentados dois naufrágios em 1503, numa referência directa à São Pedro, embarcação que também faria parte da frota que Vasco da Gama deixou a patrulhar o Índico quando regressou a Lisboa da sua segunda viagem.

Comandando estas duas naus, que integravam um conjunto que incluía uma terceira e duas caravelas, estavam dois tios maternos do grande navegador da Rota do Cabo, Vicente e Brás Sodré. D. Manuel I tinha a intenção de que este pequeno esquadrão de cinco embarcações se dedicasse a combater os muçulmanos na costa do Malabar e à entrada do Mar Vermelho, assegurando o controle do comércio de especiarias.

Ainda segundo o artigo agora publicado, espécie de relatório preliminar que evoca uma série de documentos contemporâneos do naufrágio ou não muito distantes dele, Vicente Sodré, que liderava esta frota de cinco barcos, ignorou as instruções do rei e de Vasco da Gama, e dedicou-se com ela a saquear os barcos árabes que navegavam naquelas águas, por regra com valiosas cargas, actuando como um verdadeiro corsário.

Pêro de Ataíde, testemunha ocular que faz o seu relato dos acontecimentos numa carta de cinco páginas que dirige a D. Manuel (1504) – a ele estava entregue o comando da terceira nau –, diz que os confrontos entre portugueses e muçulmanos eram violentos e que os irmãos Sodré, que guardavam para si a parte de leão do saque, não poupavam vidas.

Foi num intervalo dessa actividade que decidiram fundear a frota na costa de Al Hallaniyah porque as embarcações precisavam de ser reparadas e a tripulação de mantimentos. Os habitantes receberam bem os portugueses e foram os pescadores que, mais tarde, avisaram comandantes e pilotos de que se aproximavam ventos perigosos do norte e que o melhor era deslocarem-se para o outro lado da ilha. Uma caravela estava em terra a ser reparada, a outra seguiu as recomendações, mas Ataíde e os tios de Vasco da Gama resolveram ficar. Quando a tempestade chegou, as âncoras não resistiram à força das águas e as naus dos irmãos Sodré foram atiradas contra a costa, ficando destruídas. Alguns dos membros da tripulação da São Pedro sobreviveram (Brás estava entre eles, morrendo pouco depois), mas a da Esmeralda, incluindo Vicente, foi arrastada para o fundo da baía.

Pêro de Ataíde ficou à frente da frota então reduzida a três embarcações, ordenando que se recuperasse toda a carga possível e que se queimassem os destroços visíveis das naus. José Virgílio Pissarra, historiador naval, diz que esta leitura dos acontecimentos não é correcta, já que cerca de 150 homens se terão salvo – o que corresponderá a praticamente toda a tripulação das duas naus , embora Vicente tenha morrido.

Para este investigador do Centro de História da Faculdade de Letras de Lisboa há boas probabilidades de este naufrágio estar relacionado com os irmãos Sodré dada a sua localização e a antiguidade dos artefactos, mas dizer que a nau a que o espólio pertence é muito provavelmente a Esmeralda é “insustentável" do ponto de vista científico: “Não há nenhum artefacto que nos possa trazer o nome do barco e encontrar documentos que ainda não se conheçam de uma época tão remota é altamente improvável. Se há dois navios naufragados nas mesmas circunstâncias, na mesma zona, nunca teremos a certeza a qual deles pertence a carga.”

A mesma opinião tem Luís Filipe Vieira de Castro, da Universidade do Texas, investigador que se tem dedicado à história marítima e à arqueologia náutica. Defendendo que, sendo praticamente todos os artefactos da primeira metade do século XVI “a história é plausível”, garante que a identificação da embarcação é impossível de fazer sem que haja margem para dúvidas. Isto porque há pelo menos mais um naufrágio português na mesma área – o da nau São Pedro – e outros navios perdidos que podem ter acabado naquele ancoradouro, explica ao PÚBLICO.

“Não creio que se possa identificar o navio, como não se pode identificar a Nossa Senhora dos Mártires em S. Julião da Barra. Mas esta colecção de artefactos bem estudada pode contar mil histórias fantásticas, não só sobre Portugal. Faz-me pena ainda andarmos dentro deste paradigma das nacionalidades. A Expansão portuguesa é uma história de cosmopolitismo”, diz este professor que muito tem estudado os navios ibéricos do século XVI, classificando o achado, associado ou não à frota de Vasco da Gama, como "extraordinário".

A armada de D. Manuel I

Se o nome da nau é discutível, a importância do achado não o é. Até porque, caso se confirme que é o local onde os tios de Vasco da Gama perderam os seus navios, estaremos perante os primeiros naufrágios localizados da chamada armada da Índia, explica José Pissarra: “Até aqui tudo o que sabemos do espólio aponta para que seja um navio de guerra e não um navio da carreira da pimenta, comercial. A confirmar-se que o espólio saiu das naus dos Sodré, podemos dizer que nunca antes se tinha localizado um naufrágio da armada de D. Manuel I no Índico.”

Acrescenta Pissarra, autor de uma tese de mestrado sobre esta armada, que na fase inicial do comando de Vicente Sodré a frota era ainda pequena, com apenas cinco navios, mas na década de 1530 chegou a ter 200: "É a primeira armada europeia com um destacamento transoceânico. É algo de realmente novo.”

O espólio recuperado – 2800 objectos, não havendo quaisquer vestígios do casco nem de outras estruturas  leva os autores do artigo a defenderem que se tratava, sem dúvida, de uma embarcação muito bem preparada para o combate naval, embora não tenha sido recuperada artilharia pesada (o que não surpreende, porque os portugueses que sobreviveram ao naufrágio primeiro, e os homens de Malik Ayaz, governador de Diu e principal adversário dos portugueses no Gujarate, depois, podem tê-la resgatado).

Não há provas conclusivas que permitam dizer que o espólio resgatado pertence apenas à nau Esmeralda, excluindo à partida a São Pedro, embora os autores acreditem que é uma forte possibilidade. Porquê? Porque algumas das balas descobertas têm inscritas as iniciais “VS”, que a equipa atribui a Vicente Sodré (inscrições deste género, “embora altamente excepcionais”, admitem, não são “únicas”). José Pissarra alerta para a possibilidade de estarem a fazer uma "leitura errada" das iniciais, vendo um "V" onde na realidade está um "A".

Tânia Casimiro, investigadora da Universidade Nova de Lisboa que estudou muitos dos materiais deste espólio (cerâmica, vidros, metais e objectos em pedra e madeira), é também cautelosa. Ao PÚBLICO diz apenas que formam uma colecção “muito consistente com o que se esperava de um naufrágio dos inícios do século XVI”, não excluindo a hipótese de que alguns tenham sido ainda manufacturados no século XV. O conjunto, acrescenta a arqueóloga, pode trazer informação muito relevante sobre a vida a bordo e as peças orientais encontradas darão pistas sobre o que interessava aos portugueses naquela época. Mas é preciso analisá-lo melhor.

Uma só colecção

Garantem ainda os autores do artigo que todos os objectos resgatados serão mantidos numa “única colecção coerente” que será propriedade do ministério omanense, a ser exposta no novo Museu Nacional (foi o sultanato a financiar o trabalho de investigação, à excepção das bolsas que David L. Mearns recebeu da National Geographic Society e da Fundação Waitt).

O PÚBLICO procurou saber junto do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) português se houve contactos directos entre os dois governos em relação a este projecto, mas para já o que é certo é que a situação está a ser acompanhada e que, nomeadamente por intermédio do embaixador em Doha, acreditado junto de Omã, “Portugal facilitará toda a colaboração […], havendo natural interesse no acesso de investigadores portugueses ao local de trabalho, no seguimento, aliás, do envolvimento de entidades nacionais na análise dos artefactos encontrados”.

No email enviado por Eunice Sampayo, da assessoria de imprensa, o MNE faz ainda saber que, como Omã não ratificou a Convenção sobre a Protecção do Património Cultural Subaquático da UNESCO (2001), “o acesso ao sítio do naufrágio depende da sua cooperação, mesmo sendo um navio com pavilhão português”. Sobre a eventualidade de vir a sugerir a exposição temporária em Portugal de parte do acervo, o ministério, que teve já acesso ao artigo do International Journal of Nautical Archaeology, diz apenas: “Dado o estádio em que se encontra a investigação científica será prematuro especular sobre o espólio encontrado.”

Falando numa cerimónia no Museu Nacional de Arte Antiga ao final da tarde, João Soares, ministro da Cultura, disse, por seu lado, estar a seguir a situação “com a maior das atenções”: “Estamos a fazer os contactos possíveis, através das linhas de contactos possíveis, algumas até bem discretas.”

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