Nau de Vasco da Gama foi descoberta em Omã há 20 anos mas só agora se revela

Chamava-se Esmeralda e fazia parte da armada da segunda viagem à Índia. Foi localizada em 1998 e é estudada desde 2013, mas o que os especialistas descobriram só será divulgado esta terça-feira.

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Vasco da Gama terá deixado o seu tio materno, Vicente Sodré, a patrulhar aquelas águas Cortesia Museu Nacional de Arte Antiga

O Ministério do Património e da Cultura de Omã e a Blue Water Recoveries, empresa britânica que trabalha na recuperação de embarcações naufragadas, anunciaram ter descoberto ao largo de uma das ilhas do sultanato, Al Hallaniyah, uma nau da segunda armada de Vasco da Gama, que partiu de Lisboa em 1502

A notícia, avançada pela agência Lusa e detalhada num site inteiramente dedicado a este naufrágio da carreira das índias, que deverá ser lançado terça-feira mas que esteve momentaneamente disponível esta manhã, dá conta de que os investigadores envolvidos no projecto acreditam que se trata da nau Esmeralda, comandada por Vicente Sodré, tio materno de Vasco da Gama, o grande navegador da Rota do Cabo.

No comunicado de imprensa posto online, que curiosamente tem a data de 15 de Março e que já cita alguns dos envolvidos no resgate e estudo da embarcação, o ministério omanense e a empresa britânica de salvados garantem que “este é o mais antigo navio da idade europeia das descobertas a ser encontrado e estudado cientificamente por uma equipa de arqueólogos e de outros especialistas”.

A nau naufragada, que não terá resistido a uma tempestade em Maio de 1503, foi localizada em 1998, precisamente o ano em que se festejava o quinto centenário da descoberta do caminho marítimo para a Índia passando pelo Cabo da Boa Esperança, mas só em 2013 começou a primeira campanha arqueológica, a que se seguiram mais duas, em 2014 e 2015. Omã e a Blue Water Recoveries (BWR) garantem, ainda no comunicado, que já resgataram 2800 artefactos.  

O PÚBLICO tentou saber junto do director do projecto, David L. Mearns, que elementos permitem afirmar que se trata da nau de Vicente Sodré, a Esmeralda, mas este investigador em Ciências Marinhas que, com a BWR, tem dedicado a sua vida a identificar navios naufragados de várias épocas, remeteu qualquer esclarecimento sobre as campanhas arqueológicas já realizadas e o espólio recuperado para depois da conferência de imprensa, agendada para esta terça-feira, em Mascate, a capital do sultanato. Nela, garante, a operação será apresentada em detalhe (as imagens entretanto realizadas – fotografia e vídeo – também só serão disponibilizadas amanhã).

Entre os objectos retirados dos destroços, na sua maioria armas, balas de ferro e de pedra e outras peças de artilharia, estão quatro que, de acordo com a equipa, ajudaram a identificar a nau: um disco de cobre com as armas de Portugal e a esfera armilar, iconografia ligada ao rei D. Manuel I, o monarca de quem Vasco da Gama recebe ordens; um sino de bronze com uma inscrição que sugere que a embarcação foi terminada em 1498; um cruzado de ouro cunhado em Lisboa entre 1495 e 1501; e um “índio”, moeda em prata “extraordinariamente rara (só se conhece outro exemplar no mundo)” e mandada fazer pelo monarca “especificamente para o comércio com a Índia”.

Peças e documentos

Dois académicos ouvidos pelo PÚBLICO, que têm dedicado boa parte dos seus estudos aos Descobrimentos, são bastante mais cautelosos em relação à idade e ao nome da embarcação. Ressalvando que não tiveram acesso a qualquer documentação científica sobre os trabalhos, Francisco Contente Domingues e Luís Adão da Fonseca defendem que é preciso estudar muitíssimo bem o espólio recuperado e cruzá-lo com documentação escrita relevante para tirar conclusões tão definitivas quanto possível. Os objectos não bastam.

“Estas embarcações não se afundavam com uma chapinha com o nome lá escrito”, diz o primeiro, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa que dirigiu o novo Dicionário da Expansão Portuguesa (Círculo de Leitores), lançado em Janeiro. “Há uma margem de imponderabilidade imensa. Isto não significa que eu diga, à partida, que não é a Esmeralda, pode ser, mas é preciso que haja documentação a corroborá-lo, o que passados 500 anos não é fácil de encontrar.”

Luís Adão da Fonseca, professor da Universidade do Porto que tem estudado a Expansão, sublinha, de igual modo, a importância das fontes escritas, embora não lhe custe acreditar que a nau localizada é a Esmeralda. É que, explica, os historiadores têm hoje informação que lhes permite pensar que, ao regressar a Lisboa da segunda viagem, Vasco da Gama deixa ao seu tio Vicente – o outro tio materno do navegador, Brás, comandava também uma das naus da frota, a São Pedro  a tarefa de patrulhar aquelas águas no sul da Península Arábica.

“Não temos uma carta com as instruções do Gama para o Vicente Sodré mas sabemos que, naquela altura, eles tinham já identificado o grande entrave ao projecto português – o facto de as comunicações no Índico estarem controladas pelos muçulmanos. A nau de Vicente Sodré fica para impedir que os muçulmanos dominem e actua quase como uma embarcação de corsários, que tinham uma actividade de alto risco – quando ganhavam, ganhavam muito, quando perdiam, às vezes perdiam tudo. E aqui, claramente, a coisa correu mal.”

É preciso ver ainda, acrescenta o professor da Universidade do Porto, que esta segunda armada de Vasco da Gama “é muito mais complexa do que a primeira, que era de descoberta. Esta tem objectivos políticos, estratégicos. E é para ajudar a organizar a presença portuguesa no Oriente que Vicente Sodré fica”.

Os dois académicos esperam agora os relatórios científicos. “Não quer dizer que a investigação nos faça saber mais, mas pode fazer-nos saber melhor. Não precisa de trazer novidades para ser relevante, basta que traga mais matizes ao que já conhecemos, que permita fundamentar teorias”, argumenta Adão da Fonseca, destacando entre os artefactos resgatados a moeda de prata, o “índio”, que D. Manuel i manda cunhar para festejar o regresso de Vasco da Gama da viagem inaugural. “Esta moeda é um instrumento de propaganda do poder de um rei que até acrescenta títulos ao seu nome depois de 1498 [passa a ser Senhor da Conquista, da Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia].”

Contente Domingues insiste: “É preciso esperar pelos estudos mais aprofundados para perceber até que ponto é relevante, embora qualquer embarcação dos séculos XV/XVI naquelas águas seja à partida interessante.”

O relatório preliminar da investigação deverá sair esta terça-feira na publicação especializada The International Journal of Nautical Archaeology, com a assinatura de David L. Mearns, David Parham, da Universidade de Bournemouth (Reino Unido), e Bruno Frohlich, do Museu de História Natural da Smithsonian Institution (Estados Unidos). É feito com base no trabalho desenvolvido por uma equipa internacional que integra investigadores do Instituto de Arqueologia e Paleociências da Universidade Nova e do Museu Geológico do Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG). Uma dessas técnicas, Tânia Casimiro, da Nova, estudou as cerâmicas mas esteve incontactável. Miguel Magalhães Ramalho, director do museu do LNEG, e a colega Luísa Duarte estudaram duas balas a pedido da BWR. O objectivo era determinar a origem da pedra de que eram feitas, explica Magalhães Ramalho: “A primeira, que a Luísa estudou, é de rocha escura, magmática, provavelmente da região de Abrantes. A que eu estudei, e que levanta mais dúvidas, é de calcário que terá saído de uma das pedreiras dos arredores de Lisboa.” Em ambos os casos a origem dos materiais aponta para Portugal, defende.

Notícia corrigida às 14h54 de dia 16 de Março: O disco de D. Manuel I é de cobre e não de bronze.

 

 

 

 

 

 

 

 

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