Solidão em falsete

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Dan Wilton

Aparecido do nada — nunca uma canção lhe tinha escapado do computador —, Cole Williams vem sussurrado como uma das surpresas de 2013 com o projecto The Child of Lov. O álbum, tal como ele, chegou finalmente às ruas

Um dia normal na vida de Cole Williams não anda muito longe de levantar-se, tomar o pequeno-almoço, responder a uma entrevista, ouvir Voodoo — o álbum de D’Angelo depois do qual se iniciou a queda da neo-soul —, fechar-se em casa a fazer música, e escapar de vez em quando até à Internet à procura de fotografias de Kim Kardashian. A estrela-mor dos reality shows pode parecer um dado avulso desgarrado, sem qualquer relação possível com a música de The Child of Lov. Mas há um nível semelhante de obsessão que se descobre na partilha compulsiva que Williams também faz de canções de Prince ou na forma como a sua música se constrói entre quatro paredes pouco visitadas. É o próprio quem admite ser criatura de poucas saídas, de escassos amigos e de uma propensão desabrida para a solidão. Cliché repetido até ao vómito? Possivelmente. Mas não há em Williams o mais leve indício de biografia artificiosa.

Holandês, 25 anos, Cole leva metade da vida a criar batidas, um terço a juntar-lhes teclados, um quarto a manejar uma guitarra. Talvez por isso, certamente por lhe faltar a confiança para se pôr à mercê do julgamento de terceiros, nunca tocou com outros músicos. Prestes a lançar o primeiro disco pela Domino, só então começou a reunir instrumentistas que permitissem recriar o seu quarto em cima de um palco. “Estava fechado em casa a aprender a tocar guitarra, demasiado tímido para me mostrar — o mesmo com a voz e com o piano”, admite. “Era uma coisa secreta que fazia por gozo e não porque tivesse qualquer sonho de me tornar uma estrela ou sequer um músico. Faltava-me a convicção de que seria capaz”.

Essa convicção chegou-lhe tardiamente, pela mais inesperada das vias, através de uma história “minimalista”. De facto, a cadeia é tão curta que parece desafiar a verosimilhança. Williams jura que foi mesmo isto que aconteceu: um dos seus poucos amigos, um rapper, conhecia um norte-americano em Amesterdão que — dizia-se — em tempos fora manager do produtor Danger Mouse. Entusiasmado com os excertos que Williams se atreveu a mostrar-lhe, o rapper fez por entusiasmar o tal americano que, por sua vez, tratou de entusiasmar o fundador da Domino, Laurence Bell. Enviou-lhe o pouco que havia do projecto Child of Lov em formato partilhável: pouco mais de 30 segundos que acabavam quando prometiam engrandecer. Pense-se numa série de acção que se despede de cada episódio no exacto momento em que o público tem o estômago contraído e a boca tomada por uma ansiosa acumulação de saliva. “Estou intrigado”, respondeu Bell na volta do email. “Quero ouvir mais.”

Doze coisas

Aquilo que Williams tinha em mãos daria para um álbum. Mas quando a Domino manifestou interesse em contratá-lo estava a arriscar num tipo que quase não saía de casa e tinha juntado 12 “coisas” (seria excessivo chamar-lhes canções) inacabadas. Foi aí que The Child of Lov teve de erguer-se. Williams, pouco confortável com a exposição, provavelmente nunca as teria terminado. “Ser contratado e estar mais exposto, aparecer publicamente, embora de forma limitada, tem sido muito bom para a minha auto-estima — também musicalmente. Costumava pensar que fazia música estranha e que as pessoas não perceberiam. Agora já não”, confessa. Não é por acaso que fala de auto-estima. Sentia a sua formação autodidacta, a total ausência de educação clássica e a inexistência de familiares ligados à música como fraquezas que, ao primeiro comentário, o deitariam por terra — e ele por ali ficaria de cabeça baixa, a confundir-se com o chão. “No passado nunca diria a alguém que fazia música. Agora está tudo aí, alguns gostam, outros não, mas já não me posso incomodar.”

Quando começaram a circular as primeiras canções completas de Child of Lov, criou-se repentinamente um interesse alimentado tanto pela toada Prince-r&b, como pelo mistério à volta de Williams — de quem, na altura, não se sabia o nome nem se imaginava a cara. Um mistério algo involuntário, uma vez que nunca imaginara que a sua música gerasse tanto interesse tão depressa. Ainda assim, houve nesta opção algo de declaração anti-indústria. “Os artistas são hoje apresentados de acordo com a sua imagem, com a sua persona pública. Quando falamos do Jimi Hendrix”, exemplifica, “também pensamos na sua persona, mas a música vem em primeiro lugar”. Williams, claro, sabe bem que a “linha entre público e privado está um pouco esborratada hoje em dia”. E lembra um entrevistador em Londres que lhe falou das maravilhas da sua recente paternidade e quis partilhar as provas fotográficas do que dizia. Williams, pouco rotinado nesta coisa de se mostrar, “não soube o que dizer”.

Tentanto juntar-se a uma linhagem de “falsete estridente” que diz ter começado em James Brown e sido aperfeiçoado por Prince, Cole descobriu funk e soul aos oito anos, através de um best of de Stevie Wonder, passando depois pelo r&b até estacar em Voodoo, a que regressa quase diariamente: “Quando comecei a fazer música o meu objectivo era emular esse som analógico seco, mas com os meus recursos.” Enquanto se enamorava por D’Angelo, os Blur desapareciam. A idade do músico faz com que não tenha “qualquer relação afectiva” com a banda, associando primeiramente Damon Albarn aos Gorillaz. Trazido para The Child of Lov graças às ligações a Danger Mouse, Albarn foi chamado com o disco pronto, convidado a acrescentar aquilo que lhe apetecesse ao pineapple-camel-funk que Williams diz praticar. Traduzamos: ananás pelo exotismo, camelo por uma música que respeita o passado — “Estou sempre à procura da tensão entre o antigo e o futurista” — e funk por Prince.

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