Procura-se: aquele botão que faz delete

Duas peças de Simon Stephens sobrevoam no São João, com a culpa entranhada nos ossos, a vida tal como ela se deixou aprisionar em smartphones e ecrãs de aeroporto.

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Sete mensagens por ler, quatro mensagens no voicemail, 12 chamadas não atendidas.

A vida acumula-se no telemóvel na tarde em que “uma mulher com cerca de 30 anos” – assim descreve Simon Stephens a protagonista de Terminal de Aeroporto, a segunda parte da double bill que estreia esta quinta-feira no Teatro Nacional São João – decide virar à direita em vez de virar à esquerda. Esta é a tarde em que ela não irá ao veterinário, não tratará dos gatinhos, não recolherá a roupa da lavandaria, não arranjará gelado para o fim-de-semana, não se recenseará para ir votar, não reporá o líquido dos travões, não ligará à mãe, não irá buscar a filha à escola. Esta é a tarde em que, ao contrário do que faz em todas as outras tardes, ela apanhará o metro, ignorará os imigrantes que lhe tentam enfiar jornais gratuitos nas mãos e os turistas desorientados que tentam renovar o cartão de transportes, passará mesmo debaixo da Câmara Municipal (“Tens a certeza de que é verdade? Achas que faz sentido? Disseram que se levasses uma bomba no metro que passasse nessa linha – será que?”), resistirá a tanta, tanta vontade de ligar para casa, imaginará a filha aos 16 anos, e então, chegada ao terminal cinco do aeroporto internacional sem bagagem pesada nem bilhete de avião, poderá finalmente fechar os olhos e sobrevoar essa vida que se acumula impiedosamente no telemóvel e em que não fez nada (“Ficaste parada? – Foste-te embora? – Afastaste-te?”) para impedir um adolescente de ser esfaqueado no parque.

No mundo que Simon Stephens sobrevoa em Terminal de Aeroporto, os passageiros continuam a enfiar os seus produtos de higiene com menos de 100 mililitros em sacos de plástico transparente, os controladores continuam a olhar fixamente para as imagens das câmaras de vigilância, os funcionários continuam a espreitar por trás dos vidros duplos do controlo de imigração, os euros continuam a ser trocados por libras e por dólares e por rupias e por ienes – apesar de uma mulher de 30 anos ter a culpa entranhada nos ossos.

É uma forma de fatalismo, o facto de a vida continuar apesar de tudo; uma forma de fatalismo que se entranha nos ossos das duas peças de Simon Stephens que Nuno M. Cardoso junta até domingo em dois espectáculos separados por um intervalo e por uma ficha técnica, Águas Profundas + Terminal de Aeroporto (o primeiro com um elenco de oito actores incluindo, entre outros, Maria João Luís, Pedro Almendra, Albano Jerónimo e António Duraes, cenografia de Pedro Tudela, figurinos de Helena Guerreiro e banda sonora de Marco e Miguel Pereira; o segundo apenas com uma actriz, Rita Brütt, cenografia de Catarina Braga Araújo, figurinos de Nuno Baltazar e banda sonora de David Santos/Noiserv), e que se entranhou nos ossos do próprio Nuno M. Cardoso ao ponto de ele ter encontrado uma luz onde só parece haver um túnel: “Estas personagens têm de viver com as consequências de uma decisão que mudou a vida delas, é certo, mas são as consequências de uma decisão que elas próprias tomaram, como a cenografia do Pedro Tudela para o Águas Profundas sublinha: as personagens traçam uma linha que depois pode ser recomposta, reconfigurada, redefinida. Não há uma ideia de destino; aqui o que é irreversível e irremediável é a liberdade de acção. Como também não há moralismo: são todos absolutamente imperfeitos, como nós. E quando já estamos prontos a julgá-los o texto tira-nos o tapete e talvez tenhamos de os desculpar.”

No fundo do lago

O adolescente esfaqueado no parque, o acidente de carro em que se matou o amigo, o corpo repetidamente vendido no YouTube (24 mil visualizações, 78% de aprovação) para pagar doses de heroína, a miúda filipina comprada na Internet por não haver maneira legal de ter um filho, o fogo-posto, o cão afogado, a mentira deliberada, a violência gratuita, o amor a menos, o amor a mais – tanto a vida da mulher de Terminal de Aeroporto como as vidas das sucessivas personagens de Águas Profundas estão paradas nos erros irreparáveis a que não é possível fazer delete (foi por isso que Nuno M. Cardoso decidiu juntá-las numa sessão dupla: as circunstâncias são tão semelhantes que quando leu os dois textos na versão inglesa nem se apercebeu da folha que os separava e presumiu que se tratava de uma única peça, uma peça também ela em trânsito para o aeroporto, como os aviões que sobrevoam todos os actos de Águas Profundas).

Visto do alto, tudo normal à superfície dos empregos funcionais, dos filhos na escola, das bolsas para um ano lectivo no estrangeiro; é lá em baixo, como no fundo do lago de águas profundas do título da primeira peça, que se acumulam, longe da vista mas não do coração, todos os pesos-mortos que os impedem de virar à direita em vez de virar à esquerda, entrar no metro e apanhar um avião para outro futuro qualquer.

Também foi por não querer que a peça acabasse aí, no fundo do lago, que Nuno M. Cardoso decidiu fazer um intervalo e levar os espectadores até ao aeroporto de paredes transparentes onde uma mulher carrega não exactamente no botão que faz delete mas pelo menos no botão que faz pause. Sete mensagens por ler, quatro mensagens no voicemail, 12 chamadas não atendidas: esquecer que o telemóvel existe, flutuar acima dele, das câmaras de vigilância, dos controlos de imigração, do número de visualizações no YouTube, do fluxo interminável de notícias de última hora, da paranóia dos atentados no metro, parece ser a redenção possível no século XXI. A aterragem pode não ser bonita, mas fixemos este momento em que a vida está lá em cima, iluminada pela potência de dezenas de holofotes: talvez valha a pena a dor da queda.

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