O que se perde em L’Étage du Dessous é o que se ganha

A solidão do espectador, que fica sem reconhecimento, sem género cinematográfico, sem redenção no ecrã para o sossegar. Este filme romeno não pára de crescer.

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L’Étage du Dessous, do romeno Radu Muntean
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L’Étage du Dessous, do romeno Radu Muntean
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Mardi, après Noël,do romeno Radu Muntean DR

Se há filme que continua a crescer, depois da sua exibição em Cannes, é um filme que recusou permitir ao espectador que se envolvesse em manobras de identificação para daí construir a sua recuperação emocional – como por exemplo fez, na competição, Mon Roi, de Maïwenn. Exibido na secção Un Certain Regard nos primeiros dias, L’Étage du Dessous, do romeno Radu Muntean, provocou um tipo de misteriosa reacção em alguns espectadores: a sensação de que teriam perdido alguma coisa, teriam adormecido talvez, no meio ou no final, porque não deram com o clímax da história, porque os misteriosos comportamentos das personagens não serviram um desfecho. Mas esse é o ponto de L’Étage du Dessous, da mesma forma que o casal que se divorciava em Mardi, après Noël (filme de Muntean que abriu o Un Certain Regard em 2010) apenas… se divorciava - e não é assim que as coisas se passam nos filmes sobre divórcios.

O cinema deste romeno deixa perdido o espectador que está em busca de soluções ou de identificações. Deixa-o perante um colapso. As personagens são insondáveis. Como… na vida e não como nos filmes.

O que se passa em L’Étage du Dessous? Um marido e pai de família, na fase da vida em que o ritual de passear o cão começa a ser o sustento da sua tranquilidade existencial, ouve uma discussão conjugal que se passa do lado de lá da porta do andar de baixo. Depois… um crime - a vizinha é encontrada morta.

O cinquentenário (e o espectador?) suspeitam do vizinho, mas o nosso homem, misteriosamente, não diz nada à polícia que investiga o caso sobre a violenta discussão que ouviu. Esse acto da personagem – essa ausência de acto da personagem –  coloca o espectador em perda, à míngua de identificação. Até porque essa ausência vai impedir, por exemplo, que o filme mergulhe no reconhecível thriller. O que fica, então, é a solidão do espectador, sem reconhecimento, sem género cinematográfico, sem redenção no ecrã que o sossegue. O que fica é o espectador, todos nós, afinal capazes de sermos tão insondáveis nos nossos (não) gestos como o cinquentenário romeno. Sim, porque sendo um filme “realista”, L’Étage du Dessous está aberto a deixar-se invadir pelos pesadelos, pelas zonas de sombra das personagens. A boa notícia é que há outro filme romeno na secção Un Certain Regard, Le Trésor, de Corneliu Porumboiu.

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