O enigmático Weerasethakul na cultura de eventos

“A arte deve permitir o enigmático”. Programadores de festivais encontram o habitat de Apichatpong na actual cultura de eventos.

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São tempos difíceis para o que é enigmático? Veronica Kaup-Hasler dirige o Steirischer Herbst – Festival of new art, que se realiza entre Setembro e Outubro em Graz, cidade que tem uma história antiga, desde 1968, com esse festival multidisciplinar. Graz, Paris, Bruxelas, Lisboa: são as cidades europeias que recebem Fever Room, de Apichatpong Weerasethakul, depois da estreia em Gwangju, na Coreia do Sul, no Asian Arts Theatre, a 4 Setembro de 2015. “Toda a gente em Graz tem histórias para contar relaccionadas com o festival”, diz Veronica, mas “neste tempo é mais evidente a necessidade de se trabalhar para conseguir espectadores, para implementar algo que deixe rasto.” Na cultura de “eventos” instalada, a burguesia aparece nas inaugurações. O problema é parar as pessoas para as fazer experimentar – antes de saltitarem para o evento seguinte. “Temos de sobreviver”, resume, curto e grosso. É um equilíbrio precário: não desvirtuar um gesto de “resistência”, não resvalar para o populismo, mas também “não ficar preso apenas à comunidade artística”.

O seu festival, deixa entender, é pressionado à direita e à esquerda: de um lado, quer-se a performance dos números; do outro que o político seja servido na bandeja correcta – também como performance. “Isso vai contra tudo o que penso sobre as artes. É a sua instrumentalização, como que para resolver as coisas que a política falhou.” Fever Room escapa-se entre tudo isso. “A arte deve permitir o enigmático, se não fosse assim não poderíamos ter Apichatpong”. Não poderíamos ter... extasia-se... aqueles soldados adormecidos a serem sugados, nos sonhos, pelos exércitos de antigos reis nas suas batalhas de Cemitério do Esplendor, o último filme do cineasta e onde encontramos as figuras, os sonhos e os sonos de Fever Room. E onde não é difícil sentir Apichatpong, afinal, artista completamente acordado.

David Cabecinha, no seu primeiro ano como director artístico do Temps de Images, festival convidado pelo Teatro São Luiz a associar-se à apresentação em Lisboa de Fever Room, pode compreender e enquadrar os argumentos de Veronica. Mas para já consegue colocar o Temps d’Images a salvo. “Não sinto esse tipo de pressões de forma evidente. Se se vir a programação do festival ao longo do tempo, a questão política nunca é a mais evidente. O Temps d’Images começa por ser um festival em que o que está em causa são questões artísticas, de cruzamento de disciplinas” – forma uma trindade de coapresentação com o Theatre Nanterre-Amandiers e o Festival d’Automne em Paris, sinaliza-se um núcleo duro de programação de artistas que trabalham com a tecnologia. “A génese nunca foi política e ideológica – nessa perspectiva, pode ser considerado um festival menos valioso”. Não deixa de ser tomado por uma dúvida: “Como colocar a proposta artística do Apichatpong, que nos deslumbra e extasia, a par das questões que nos obrigam a rever a nossa posição na sociedade?”. Propõe que se olhe para Lisboa para se encontrar “sítios mais implicados politicamente”. Aliás, entende o convite do São Luiz ao Temps d’Images para fazer “seu” Fever Room como a necessidade de não desproteger a singularidade de Weerasethakul, dar-lhe enquadramento, encontrar-lhe um habitat. “Para nós, Temps d’Images, o Apichatpong faz todo o sentido: um cineasta que faz uma performance. Para mim, é um espectáculo de teatro, porque considera o espaço teatral. A identidade do Temps d’Images tem a ver com esse cruzamento.”

“Há um paradigma que está a mudar”, continua, “e interessa que o festival possa estimular isso. Por um lado, existe a vontade dos artistas de estarem em espaços diferentes, de contar histórias diferentes, de se aproximarem do público através de diferentes ângulos. Mas está a mudar a vida dos próprios artistas. No caso dos cineastas, a internet e a disseminação dos filmes, com a banalização do acesso à imagem em movimento, é uma expressão muito significativa disso. Como é que as imagens são rentáveis para um artista que vivia delas?”.

Oito elementos, incluindo Apichatpong, vêm montar Fever Room, espectáculo que não tem ninguém em cena. Para além desses elementos,  uma equipa técnica, exterior ao cineasta e ao teatro, está de plantão ao equipamento de tecnologia de ponta – som, video, luz – que deve ser assegurado por cada teatro onde a peça é representada. “O Fever Room transforma uma sala de teatro em cinema e isso tem implicações técnicas muito fortes. A vontade de conseguir chegar a um patamar de entendimento” com a equipa de Apichatpong “superou os momentos em que se levantou a possibilidade de deixar [o espectáculo] ir. O investimento também é artístico e cultural”, sublinha o director artístico do Temps d’Images.

Desde a estreia na Coreia do Sul, Apichatpong tem afinado Fever Room. As suas exigências para o São Luiz dizem respeito ao âmago do projecto: os espectadores devem ser encaminhados para a sala como quem conduz seres num subterrâneo – o espectáculo começa logo aí para Apichatpong, nesse percurso pela escuridão; o espaço não deverá estar lotado – 100 pessoas, no máximo, em cada representação do São Luiz – para que os espectadores possam usufurir o espectáculo de forma mais livre. O cineasta surpreendeu-se, ao longo das representações de Fever Room, com o facto de os espectadores continuarem imobilizados perante os estímulos, reagirem como quem assiste a um filme. Ainda assim haverá muito poucas cadeiras, e estão destinadas aos mais idosos ou a pessoas com problemas que as impeçam de assistir aos 80 minutos de Fever Room em pé, sentadas no chão, deitadas, a andar... E assim somos cinema em palco.

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