Eça e a falta do divã de Freud

As neuroses não retiram genialidade ao génio. Alteram o foco.

Faz hoje 116 anos que morreu, em Paris, aos 54 anos, Eça de Queiroz. Tinha algum dinheiro, mas estava longe de ser rico. Vivia do que lhe vinha de escritor, sempre na jugular dos editores e de diplomata, o que o delicioso trecho de sua lavra, extraído de um ensaio do embaixador português Francisco Seixas da Costa, traduz melhor do que um contracheque.

"Ontem, na rua, caiu inanimado de fome um indivíduo bem trajado. Conduzido para uma botica próxima, o infeliz revelou toda a verdade. Era embaixador de Portugal. Deram-lhe, logo, bifes. E o desgraçado sorria, com lágrimas nos olhos...

Morreu moço, provavelmente de um câncer no estômago, o órgão de choque de um gourmet-total.  De guardanapo no pescoço ou caneta no papel. A sequência do peixe entalado no elevador de carga da mansão do Príncipe da Grã-Ventura, nos Champs Élysées, poderia ter sido filmada pelo Woody Allen. As descrições dos banquetes no Ramalhate, dos regabofes no Grémio, ou da sopa da Vicença, em Tormes, estariam em vídeo no YouTube.

No entanto, a sua outra característica — a obsessão — o fazia ter pavor de engordar. Acabava de comer e ficava de pé, ou então andava quilômetros. Ou seja: tudo, menos terminar como o seu caricato Damaso Salcede, gordo, néscio, com as calças a estalar nas coxas...

Mas a obsessão mais madrasta (com trocadilho) veio da primeira infância: a sua origem. O menino José Maria foi registrado como de “mãe ignota”, em uma sociedade agrária, preconceituosa, carola e atrasada, do interior de Portugal. Eça nasceu num vilarejo de pescadores de sardinha e carapau, na remota lua em sagitário de novembro de 1845. 

Eu não passo de um pobre homem da Póvoa do Varzim.

Três consequências.

Primeira: a ausência de uma organização familiar materializou-se, quem sabe, na fixação de endereços.Todos os seus personagens têm endereço, com nome da rua, número, etc. Endereços esses que às vezes atuam como personagens, O Ramalhate, por exemplo;

Segunda: Eça só começa a contar de si a partir de Coimbra, onde se formou com vagares.

Terceira, e a mais sofrida: inconscientemente tornou-se um misógino.

A catarse se realizou a partir do perfil de todas as suas personagens femininas. Todas elas transgressoras. O que varia é o grau, que vai da beata que exorciza os seus pesadelos eróticos, à dissimulada, à frívola, à chantasista, à adúltera... à incestuosa.

Um corte para o meu ponto de vista.

Se Eça tivesse tido acesso à psicanálise, cuja prática terapêutica da metade do século XX e em diante passou a estar disponível para a grande maioria das pessoas, teria aprendido a lidar com mais resignação "à dor de viver",  projetando menos a (sua) mãe solteira nas demais “mulheres de seus romances”?

Mas essa solução, cronologicamente, seria impossível. Eça viveu sua vida plena entre 1865 e 1900, ano de sua morte (16 de agosto). E Freud (11 anos mais velho) escreveu o seu primeiro livro neste mesmo 1900.  Um discípulo seu, Carl Jung, formou-se em 1901. E Lacan, por sua vez, nasceu em 1901.

Estranhas descoincidências.

Duas atenuantes. Como ele foi, antes de mais nada, um crítico feroz dos costumes portugueses, o aviltamento das suas mulheres não é só vingança do filho natural, mas uma denúncia do machismo corporativo dos homens (só daquele tempo?). 

Finalmente e segundo o meu amigo, médico e psicanalista Luiz Alberto Py, as neuroses não retiram ao gênio genialidade. Alteram o foco. Eça continuaria sendo, como foi, o mais fulgurante romancista português do século XIX mas, possívelmente, as améliazinhas e marias eduardas seriam menos infratoras. Quem iria para o purgatório seria o reino, o governo, o ensino, a Igreja e o Portugal a quem Neptuno e Marte não mais obedeciam...

Mas o Padre Amaro continuaria no inferno.

Vice-Presidente da TurisRio

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