Direito ao deserto

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Nostalgia de la Luz DR

Em "Nostalgia de la Luz", Patricio Guzmán olha para o deserto de Atacama como coração da história do Chile moderno. Um filme sem demagogias, imperdível

E, a meio do DocLisboa, aparece um fortíssimo candidato a destronar "Last Train Home" como melhor filme da competição, talvez mesmo do festival. E o chileno Patricio Guzmán, autor do lendário tríptico "La Batalla de Chile", fá-lo sem inventar a roda, apenas usando a forma do documentário para construir elegante e pacientemente um ensaio sublime sobre o modo como a memória e o passado moldam a sociedade e as pessoas que somos.

"Nostalgia de la Luz" começa e acaba no mesmo ponto: na memória de um outro tempo de inocência entretanto perdida, simbolizado na poeira que flutua à luz do sol incrustada repetidamente ao longo das imagens. Para um cineasta cuja obra documental sempre se preocupou com a história traumática do Chile moderno, sobretudo com os períodos da utopia Allende e do pesadelo Pinochet, essa memória de inocência é o norte que guia a sua viagem pelo deserto de Atacama, entendido como ponto fulcral de toda a história do país.

Foi ali que a ditadura de Pinochet enterrou em valas comuns muitos dos desaparecidos que ainda hoje os familiares procuram; foi ali que o regime militar desterrou os indesejados, para campos de concentração improvisados a partir de ruínas de minas.

Mas as condições climáticas únicas tornaram-no igualmente num fervilhante centro científico: graças ao céu limpo e à transparência do ar, foi ali que as autoridades científicas instalaram telescópios de longo alcance que nos permitem desvendar novos mistérios da história do universo.

E é aí que Guzmán põe o dedo na ferida: Atacama é a memória viva de um país que ainda não aprendeu a enfrentar o seu próprio passado. Se a astronomia é uma espécie de arqueologia cósmica, então filmes como este são uma espécie de arqueologia social, mantendo viva uma memória que muitos preferem esquecer. Nostalgia de la Luz é exemplar do que pode ser, hoje, um documentário engajado que recuse demagogias gratuitas e se concentre no humanismo da sua militância. É, repetimos, um grandíssimo, e imperdível, filme.

Competição internacional: Nostalgia de la Luz, de Patricio Guzmán. Lisboa, Cinema São Jorge, hoje às 19h30; repete 6.ª, 22, às 21h.

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