Nordeste brasileiro, um mundo novo, uma potente sensualidade

O Nordeste brasileiro desconstruído e efabulado: os seus vaqueiros como um mundo novo de possibilidades que nos faz sentir espectadores virgens perante esta potência, esta sensualidade. Boi Néon vai explodir no IndieLisboa. O nome é Gabriel Mascaro.

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Hélia Scheppa

É um filme de prazer, Boi Néon; sensação fulminante de descobrir corpos como coisas a acontecer e não estereótipos.

O cenário são as Vaquejadas do Nordeste brasileiro, misto de rodeo, feira agrícola – a lama, o esterco –, desporto e espectáculo de electrónica e forró – o néon. Com uma delicadeza enorme, Gabriel Mascaro, 32 anos, natural do Recife, observa o espectáculo a acontecer, interceptando-o mas não estando disposto a descodificá-lo: é uma paisagem socioeconómica que muda e uma paisagem humana que é um mundo de possibilidades.

O que temos perante nós é uma “família”. Mas não estamos seguros da função que cada um desempenha no grupo – nem se os afectos que os ligam correspondem a um papel. São trabalhadores, deslocam-se de camião para os rodeos e é dentro dele que vivem: a camionista, a filha, que procura um pai, o vaqueiro que tem força para agarrar os touros e mãos delicadas para os tecidos (quer ser fashion designer) e quem mais entrar para a intimidade do camião, como aquele outro vaqueiro obcecado com o paciente desfrisar dos seus cabelos.

É este mundo de possibilidades, e a impossibilidade de aprisioná-lo, que moldam a potente sensualidade deste enorme e terno filme que recebera já o prémio da crítica e dos cineclubes do Festival Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira e que no IndieLisboa é exibido na secção Silvestre.

Boi Néon inicia o espectador em algo de novo, faz dele virgem. Mais bonito ainda: termina e o espectador permanece nesse estado de virgindade.
Isso acontece talvez porque o filme acaba sem pretender encerrar esse mundo que foi construído. Não tenta fechar. Pelo contrário, abre. E tenta mostrar como esse mundo é tão complexo, envolve desejo, pessoas, vidas, quotidiano, pessoas que estão num mundo em transformação. Como realizador, é-me muito difícil criar um fim para essas personagens, porque são vidas muito complexas em transformação, e encontrar um desfecho para elas seria injusto e desonesto. O filme não julga as personagens e as personagens não se julgam entre si.

A minha primeira questão era um preâmbulo. Vamos começar pelo princípio, aquela sequência muito concreta, mas que simultaneamente condensa o filme: o vaqueiro Iremar (Juliano Cazarré) numa paisagem de restos, de algo que foi deitado fora, a recolher tecidos e pedaços de manequins, partes de corpos. Algo está a acabar e algo pode ser recomposto. O que é que no Nordeste acabou e está a começar?
Há uma construção histórica que foi feita em relação ao Nordeste brasileiro, associado sempre à pobreza, à fome, às revoltas populares. Num primeiro momento, na literatura, nas artes, esse lugar é o lugar de onde as pessoas se querem vir embora. Num segundo momento, pela força do Cinema Novo brasileiro, tornou-se lugar das revoltas, lugar que vai reparar as crises dos centros urbanos: estes perderam os seus valores e é no sertão que essas pessoas se vão revoltar e resgatar as raízes perdidas dos centros urbanos. A identidade brasileira estará no Nordeste nas regiões afastadas dos centros urbanos brasileiros.

Essa é uma alegoria muito forte que é construída no imaginário, no devir nordestino, nesse ser nordestino. Eu cresço nessa paisagem quase que reproduzindo simbolicamente as coisas. Mas ao mesmo tempo tratou-se de desconstruir esse imaginário em que cresci, quis fazer o contrário. Quis fazer um filme com pessoas que não se querem ir embora, é um road movie que não leva as pessoas a lugar nenhum. É uma viagem cíclica, que não transforma existencialmente as pessoas mas que imprime os conflitos quotidianos de um grupo que quer sonhar diferente, quer ter uma vida diferente naquele lugar sem querer ir embora.

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Há um músico, Luiz Gonzaga, uma figura muito forte, um nordestino que construiu toda uma estética em relação à roupa, ao vestuário. Muito cedo foi para São Paulo e canta muito sobre a saudade, sobre um lugar parado no tempo, nostálgico, e onde ele espera voltar. Quase museificado. Eu queria construir um Nordeste vivo, que está a interagir com outras culturas, personagens que estão a lidar com outras noções de corpo e género, a expandir essas noções numa cultura associada ao sexismo, ao machismo, à cultura do cowboy e da country. Tentei criar um estado de suspensão.

Para voltar à sua pergunta inicial, é um mundo em suspensão, são corpos que habitam uma paisagem em suspensão e a forma como o filme olha para eles, um aparente excesso de normalização, cria ruído. É um filme em que o ruído que se estabelece deriva das expectativas que criamos em relação às personagens. E elas vão destruindo aos poucos as nossas expectativas.

Para voltar à paisagem e a esse plano de que falou, é muito feliz o seu questionamento, porque trabalha com uma ideia muito forte, para mim, no filme que é a da ambiguidade da imagem: você tem a poeira e tem a beleza das coisas, tem a ambiguidade de ser apresentado o futuro e o passado, tanto o progresso como a crise do progresso, tudo na mesma imagem. Todo o filme é permeado de ambiguidade. Aquela imagem é a do Nordeste clássico, todo o solo rachado, monocromático, mas foi nesse solo que coloquei os tecidos, as cores, esse Nordeste contemporâneo que fala do excesso de consumo, de produção desgovernada.

É como se a paisagem e a economia se desenvolvessem num sentido, mas houvesse uma resistência, essa tal coisa nova: a potência humana. O seu filme é muito sensual.
Justamente, como as personagens carregam no corpo uma relação atípica, quanto mais eu aproximava a câmara, mais percebia que estava a jogar contra a personagem, a criar uma caricatura. Enquanto se afastasse a câmara, estava a devolver à personagem a sua humanidade, a construir uma potência em relação à paisagem; quanto mais distantes, mais íntimos e próximos estávamos das personagens. Construímos o filme todo em termos dessa distância física da câmara e do corpo, o que devolvia a aproximação humana, a intimidade.

De onde vêm essas pessoas?
Boa pergunta. No Nordeste brasileiro há um complexo de confecção de moda surf. Num lugar seco onde quase não há água. Esse paradoxo habita esses lugares. Conheci alguém que trabalhava nos bastidores da vaquejada e trabalhava numa fábrica de roupas. Foi um primeiro contacto com o prazer e com a violência a habitar o mesmo corpo, bravura e sensibilidade. Foi a entrada para este universo, perceber essa latência do prazer e violência a habitar o mesmo corpo.

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Na sequência em que Iremar tira as medidas ao corpo de Galega (Maeve Jinkings) para criar a roupa, num outro filme seria momento de titilação erótica. Mas aqui é pela ausência desse cliché que a cena é poderosa. A sexualidade e a sensualidade estão em todos os lugares menos nos mais óbvios.
Exacto, bela observação...

Para além da relação do homem com os tecidos, é uma mulher que conduz o camião e que tem uma filha cujo pai é ausente, há outro vaqueiro que aparece e está mais preocupado com desfrisar os cabelos. E chega a mulher grávida para vender perfumes aos vaqueiros que passam o dia com as mãos no esterco. Estas figuras resultam também de encontros, de pesquisa?
Comecei a pesquisar estas personagens, tentando não reproduzir o cliché do Nordeste machão, e conheci e entrevistei muitas camioneiras, conversei com operários de fábricas de roupa. Foi um exercício de encontrar personagens que desafiassem as nossas expectativas mas que não reproduzissem caricaturas, procurar humanizá-las. Não queria só inverter, o homem feminino e a mulher masculinizada, queria figuras em expansão. Não estão numa inversão, estão mais do que isso, e isso deixa as pessoas intrigadas. Como os animais: eu não queria humanizar os animais nem animalizar os homens, também se tratava de expandir as noções de corpo

A presença constante de manequins, formas à espera de ser vestidas, concretizadas... é motivo recorrente.
Muito curioso, nunca ninguém me tinha perguntado isso... Há a tal cena inicial, não sei se fica claro para o espectador que Iremar apanha o tórax de um homem e o corpo de uma mulher. Ele vai construindo esses metacorpos, uma relação quase deleuziana com os corpos, corpos em expansão.

Em Ventos de Agosto (2014) havia uma pescadora que ouvia punk no Nordeste... Tal como os pedaços de manequins, estas personagens correspondem a uma montagens de “peças” que você encontra no Nordeste?
É difícil responder a isso. Passa de uma intenção minha de mapear esse deslocamento, esse lugar do metacorpo, desse corpo desfigurado naquele lugar. Precisava de personagens que não fossem ingénuas, não queria personagens que reclamassem da vida, que fizessem o espectador sentir-se culpados por serem pobres. Queria personagens intrigantes, que não fossem ingénuas...

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... é um filme transgénero...
... [risos] as personagens resultam de um encontro mas também da vontade de efabular esse mundo, é mesmo uma mistura. E acontece que, à força de querer efabular, acabo por encontrar as pessoas que tenho na cabeça, sabe?! Vou buscá-las à vida real. Eles existem. É um encontro entre a efabulação e o contacto com o real. Como o filme: escrito numa forma naturalista, quase normalizada, numa paisagem quotidiana, mas também com algo de surreal, de onírico. Entre esses dois paradigmas, a efabulação e a experiência orgânica do mundo real, cria-se o filme.

Em Ventos de Agosto, você aparecia a recolher som, a medir o vento. O que é que isso diz do realizador Gabriel Mascaro?
Nesse caso, eu tinha uma relação com um pescador. A mesma matéria-prima para mim, naquele trabalho de captação ventosa, numa zona de convergência intertropical, era a mesma matéria-prima que o pescador usava para pescar nas marés. Estávamos em mundos tão distantes, era muito estranho que estivéssemos juntos. É como no mundo da vida: podemos ser tão diferentes, e sendo tão diferentes estar tão próximos.

Essa foi também a minha imersão no Boi Néon, num ambiente tão distante, tão absurdo, tão surreal, mas pode ser tão verdadeiro, tão orgânico, tão perto da gente. E identificar-me com aquelas personagens.

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Este actor é popular no Brasil, trabalha em televisão. No ano passado falei com o realizador de Praia do Futuro, Karim Aïnouz, a propósito da composição de Wagner Moura, também vedeta no Brasil, como homossexual, e do “caso” que desencadeou. O corpo de Juliano Cazarré permite o reconhecimento confortável da masculinidade. Mas tudo o resto complexifica. Isso exigiu alguma negociação com o actor ou ele abraçou imediatamente essa expansão?
Ele ficou muito apreensivo quando leu a cena de sexo [entre a personagem e uma vendedora de perfumes, grávida], que é muito difícil, ficou inseguro, não foi fácil. Ele começou a colocar em dúvida se iria dar conta do recado. Começámos as rodagem, e foi aos poucos. Todos aliás entraram inseguros, o exercício de sedução do elenco foi feito aos poucos, foi um processo de conquista diária, um jogo com colaboração do director de fotografia para entender uma luz que deixasse os actores confortáveis. A luz exerce esse papel de sedução do elenco a entrar no filme. Há uma cena especial, a que mais marca a energia do filme: a cena em que todos os rapazes estão a tomar banho nus. Foi a cena em que todos perceberam a razão por que estavam naquele filme.

Porquê?
A forma como ilumina os corpos, como os respeita, a forma como não tem pudor de olhar para o corpo masculino, a elegância, a erotização, o despudor e a naturalidade de um corpo a tomar banho. É uma cena natural que ao mesmo tempo é erótica. A mesma cena carrega as ambiguidades. Foi uma cena feliz para o elenco. Mostrei-lhes a cena e todos mudaram a relação com o filme depois disso, entenderam a importância da partilha do corpo performático na cena, e como ele estava a ser usado, sem maniqueísmo, sem oportunismos. Sem violar.

Porquê aquele actor? É um grande actor, tem um talento imenso, mas carregava uma imagem raw, muito bruta e o meu desafio era humanizá-lo. A performance era chegar a um lugar contrário, mais sensível, um outro devir. Desconstruir a figura.

Vamos à cena de sexo, das grandes vistas nos últimos anos. Quando se pergunta hoje como é que uma cena se fez, está-se a perguntar sobre os efeitos especiais. Isso explica-se facilmente. Mas o humano permanece misterioso. Pergunto: como é que se chegou a um ponto daqueles em que o nosso desejo se confronta com tabus, em que podemos sentir, simultaneamente, dificuldade em olhar e paz na naturalidade de olhar para o sexo e para o prazer entre dois actores, um deles uma actriz grávida?
Fiz um teste de actrizes grávidas, oito meses antes da filmagem. Um filme sobre corpos em paisagem em transformação e com corpos também em expansão, o corpo da mulher grávida era muito importante. Tem uma relação com a pureza e com a santificação e eu queria desafiar essas noções, aproximar esse corpo grávido de um corpo que pode ter prazer, autonomia. E aproximar isso do universo dos cowboys pode ser mais forte: há homens que não fazem sexo com as mulheres grávidas porque elas estão num momento santificado. A personagem do filme vai normalizar essa situação, ele nem sequer questiona, e é esse excesso de normalização que é importante. É um lugar tão natural, e esse excesso de escrita ordinária é para mim a potência do filme. Essa imagem afasta e aproxima gente, a mesma cena. Você sai e começa a perguntar: ela estava mesmo grávida? É uma actriz mesmo? E o marido dela, como deixou? Mas ninguém questiona sobre a esposa do actor. É o machismo impregnado em nós o tempo todo.

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Hélia Scheppa

Os filmes fazem-se para fazermos essas perguntas... mesmo que fiquemos sem respostas...
Claro, mas a cena é longa o suficiente para às tantas deixarmos de fazer perguntas e entrarmos na cena – de outra forma, seria apenas um efeito e choque.

A minha pergunta era sobre o mistério. Como se “desenha” uma sequência em que tudo é tão íntimo e ao mesmo tempo tão concreto, com gente a observar, a filmar, a interpretar? Intimida porque resulta inexplicável. Ensaia-se? Espera-se que aconteça?
Lembra-se daquela cena em que Cacá [filha de Galega, é interpretada por Alyne Santana] pede a um homem para lhe dar um abraço? Para chegar a essa palavra, demorou, construímos um exercício em que o gordinho ficou encostado a uma parede. Quando ele estivesse cansado, teria de pedir a Cacá para lhe dar um abraço. O abraço de Cacá tiraria ele da posição desconfortável. Cacá brigou com isso. Deixou o outro sofrendo, quase chorando, até que ele disse: “Não aguento mais, vou cair.” Isso foi no primeiro dia para descobrir quem ia ficar no elenco, através de uma cena lúdica e violenta e em que Cacá estava no controle. Eu disse a Cacá: se você não tiver disposição para falar, se não tiver vontade, não fala, pensa, respira, fala quando tiver vontade. As cenas em que gosto mais de Cacá são aquelas em que ela, em vez de falar, respirava apenas. Esses respiros, esses silêncios, são os lugares do filme. E transcendem o filme como um todo. Porque o filme deve esperar, deve cortar a urgência maniqueísta, deve esperar a energia que é mais orgânica, mais verdadeira. Os actores precisam de tempo para viver a situação.

A cena de sexo foi isso. Construímos com os actores, que não estavam muito confortáveis. Ela mais tranquila do que ele, que não sabia como abordar. Ela foi muito generosa, trouxe-o para a cena, fizemos um primeiro desenho e depois deixámo-los decidir como seria a forma mais confortável para eles. Eles estavam distantes [da câmara]. É uma cena que imprime verdade, é respeitosa. Isso para mim é o mais importante.

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