A lusofonia que pouco (ou nada) sabe sobre si própria

João Branco chegou de Cabo Verde, onde vive há 25 anos, para estrear uma peça no auditório com o nome da mãe, no Rivoli: Estrangeiras, de José Luís Peixoto.

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PAULO PIMENTA
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Há cerca de dez anos, uma peça de teatro levou José Luís Peixoto ao Mindelo, a segunda maior cidade de Cabo Verde, na ilha de São Vicente. Numa oficina de dramaturgia ficou acordado que a sua escrita se havia de cruzar com as encenações de João Branco. Combinaram que haveria de ser sobre Cabo Verde, o país que partilham – onde José Luís Peixoto viveu durante um ano e João Branco vive há 25.

A peça acabou por andar à volta de um triângulo que conta a história da lusofonia contemporânea: um Portugal, um Brasil e um Cabo Verde que não se conhecem entre si. E como nestas coisas “o tempo tem sempre razão”, diz João Branco, Estrangeiras chega aos palcos neste Verão de 2016 em que os dias se vivem quentes pela onda anti-imigração no Reino Unido, com réplicas em vários países da Europa – ou não fossem já mais do que evidentes as sequelas da crise dos refugiados.

É no Teatro Municipal Rivoli, mais concretamente no palco do Auditório Isabel Alves Costa – mãe do encenador , que três mulheres se encontram, cheias de preconceitos sobre as nacionalidades das outras e dúvidas sobre a sua própria identidade. Janaina Alves é Isabella Alves, Francisca Lima é Maria do Rosário dos Santos e Sílvia Lima é Dailia Lima, a “Didi”  as actrizes para quem José Luís Peixoto escreveu o texto, mantendo os apelidos. Escreveu sobre as suas histórias, sobre os seus preconceitos, sobre as experiências que as marcam enquanto brasileira, portuguesa e cabo-verdiana, respectivamente.

Movidas por diferentes aspirações, quis o destino que se encontrassem na mesma “prisão”: a sala de um aeroporto onde esperam pela permissão para entrar nos Estados Unidos, o destino de imigração. É naquele espaço que acabam por se entender, não por falarem português nem por fazerem parte da mesma comunidade, mas por estarem confinadas. “No fundo a comunidade lusófona delas é este espaço fechado” que as torna na “mesma pessoa”, e “não aquele que é criado institucionalmente”, afirma João Branco.

Vive-se portanto na peça o confronto de universos lusófonos que falharam na ideia de serem um só. João Branco recusa, porém, que a peça seja uma crítica à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). “Isto é apenas uma constatação”: três mulheres comuns que, segundo o encenador, pensam como a maioria da população que representam simbolicamente. “Basta-me andar num táxi no Brasil e dizer que sou de Cabo Verde, o taxista não faz ideia. Se digo que Cabo Verde é na África lá vêm os elefantes, os leões, as fomes e as guerras”, descreve.

Descrições como estas repetem-se, fruto de um cenário “formatado pela indústria de entretenimento”, acredita o encenador: o Brasil que os portugueses constroem pelo enredo das novelas, o Portugal que os brasileiros conhecem do humor popular (nunca falta a anedota “do português”), o Cabo Verde que portugueses e brasileiros idealizam como “uma África Minha”, sustentada no cinema e na ideia fantasiosa de que “a fome, a miséria e os animais selvagens” resumem uma nação que nem sabe bem onde começa a sua identidade africana. Some-se ainda um passado colonial “mal resolvido”.

“A lusofonia é como uma bolha: algo que a gente não sabe muito bem o que é”, “um conceito que é mais institucional”, ainda que na formação da CPLP estivesse “um guarda-chuva comum da língua e da cultura”. João Branco, também director do Centro Cultural Português no Mindelo, sente que é necessário que “este guarda-chuva” permita a troca de experiências culturais entre as comunidades, “porque a falta de conhecimento que temos uns dos outros" tem precisamente a ver com a escassez de contactos a esse nível. Para o encenador, falta edição de autores da lusofonia nos vários países da comunidade. Falta que se vejam o cinema e a arte que se fazem lá dentro. Faltará mais do que tudo o sentimento de que se está dentro de uma comunidade.

“Falamos uma língua comum, mas mesmo assim não nos entendemos”, constata João Branco, sublinhando uma incompreensão que é evidente na peça e também cá fora, na vida real, mesmo entre as duas comunidades (brasileira e cabo-verdiana) com mais expressão em Portugal. As três personagens comunicam na língua de Camões, de Jorge Amado e de Cesária Évora, mas no caminho para se compreenderem umas às outras metem-se os sotaques, as expressões típicas – do “trem” brasileiro à “bicha” portuguesa  e, com ainda mais força, os preconceitos.

A peça, com música do brasileiro Caio Terra, percorrerá, não só em cima do palco, as diferentes latitudes da lusofonia: sexta-feira e sábado estreia-se no Porto (não muito longe de Ponte da Barca, de onde é natural “a portuguesa"), no final de Agosto chega a Teresina, no Piauí, a terra “da brasileira”, e em Setembro ruma ao Mindelo. Em cada local a interpretação “vai ser sempre outra”, resta que se constate “que nos conhecemos tão pouco” para que “nos possamos conhecer melhor".

Texto editado por Inês Nadais

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