“A infâmia do mundo dos Borgia não é maior nem pior do que a actual”

O primeiro romance de Dario Fo é um texto político a partir da figura de Lucrécia Borgia. Em A Filha do Papa ela é uma mulher inteligente, determinada na defesa da justiça, vítima dos jogos de poder do pai e do irmão, e um exemplo para os tempos actuais “de vazio de valores e corrupção”, conforme diz Fo numa conversa com o Ípsilon.

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Dario Fo fotografado em Junho do ano passado em Roma Stefano Colarieti/Corbis
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Lucrécia Borgia desenhada por Dario Fo

“Divertiu-se?”, pergunta, antes de mais, Dario Fo, voz rouca ao telefone, para verificar se o efeito que queria causar com aquele que é o seu primeiro romance, escrito aos 87 anos e vinte depois de vencer o Nobel da Literatura, era o que desejava.

Um livro onde recorre à sátira social, à alegoria e ao sarcasmo para reescrever a biografia de uma das mulheres mais odiadas da História: Lucrécia Borgia. A Filha do Papa, editado em Itália no ano passado e traduzido para português poucos meses depois, parte de uma premissa: a de que qualquer julgamento ou apreciação moral devem ser feitos à luz dos valores da época em que a acção decorreu, ou seja, Lucrécia é o resultado da sociedade onde nasceu e viveu e tudo o que se contou sobre ela até hoje resulta disso e da censura social e religiosa impostas e impressas nas várias versões.

“Este romance é uma tentativa de me aproximar da verdade através da alegoria”, justifica Dario Fo, 88 anos, pintor, dramaturgo, cantor, compositor, encenador, activista político, comunista que fez de Silvio Berlusconi e da Forza Italia os seus alvos mais recentes e que em 2006 se candidatou à Câmara de Milão contra o homem apoiado pelo antigo primeiro-ministro italiano, é alguém que não vê cada disciplina artística isolada, mas como parte de algo maior. “A minha perspectiva é a dos homens do Renascimento, capazes de olhar o todo. São para mim uma referência”, justifica aquele a quem os mais próximos tratam por “mestre” e acredita que a fachada não é indiferente ao interior: “É de fora que se pode olhar para dentro.”

Está explicada a génese deste romance sobre um tema já tantas vezes dissecado em livros, no cinema, em séries de televisão. “Os Borgia, e Lucrécia em particular, chegam-nos ainda como uma farsa. Decidi mantê-la, de certa forma, no que ela tem de lúdico”, continua Fo numa conversa com o Ípsilon a partir de Milão, onde vive e onde estava a preparar uma exposição de pintura para levar primeiro a Paris e depois a Roma. “Começo sempre por aí, por pintar a cena, contá-la em tela e depois canto-a ou escrevo-a ou as duas coisas.” 

A verdade que Fo procura neste romance vem embrulhada em vício, erotismo, uma quase pornografia. “Sim, o lado pornográfico serve-me”, confessa. “Qual o motivo de tanto interesse sobre o comportamento destes personagens? Antes de mais, a despudorada falta de qualidade moral que lhes é atribuída em todos os momentos da vida. Uma existência libertina desde a sexualidade ao comportamento social e político”, escreve no preâmbulo onde lembra trabalhos de Vitor Hugo, Dumas ou John Ford, inglês do século XVII, autor da peça Que Pena Seja Puta, que Fo considera um dos trabalhos mais “notáveis” sobre Lucrécia, inspirado nos supostos amores entre ela e o irmão, Cesare. “Os meus colaboradores ajudaram-me numa pesquisa exaustiva, um levantamento de textos e, em todos, Lucrécia aparecia como a infame. Fui atrás dessa pista tentando, como lhe disse, chegar a uma verdade”, conta Dario Fo.

Em A Filha do Papa também tudo começou com a pintura, aguarelas alusivas à época, retratos de cada um dos membros da família Borgia e de quem com eles jogou papéis importantes nesse xadrez que determinou a História da Europa em finais do século XV e início do XVI. São 30 pinturas a abrir um livro em tudo inédito na longa carreira de Dario Fo. “Nunca tinha experimentado o romance. Foi um desafio. Isto só tem graça enquanto podemos testar coisas. É uma nova técnica de escrita e foi muito estimulante ou não o teria feito”, diz num tom de desafio, atropelando-se nas palavras, porque tem pressa. Quer dizer tudo o que importa o mais rápido que conseguir para voltar ao que tem para fazer. “Tenho ali muito trabalho à minha espera”, e, sem pausas: “Já agora, a tradução, que tal está? Sei que todos nos entendemos, mas...” 

A gargalhada pontua a passagem para o tema seguinte. A política. Quem conhece a biografia deste homem nascido em Leggiuno Sangiano, Varese, em Março de 1926, sabe que ele não é capaz de não politizar. Sente ser essa uma das suas funções enquanto artista. Em 1997, um ano antes de José Saramago, quando venceu o Nobel, muitos jornais lembraram-no como “um provocador profissional”, numa alusão à espécie de provocação maior que a atribuição do Nobel representou para o mundo da literatura.

Ele não tentou diluir o efeito. Quando recebeu a notícia disse-se “chocado”, sabendo o efeito que essa declaração também produzia. A literatura era só uma das suas disciplinas, cultivada enquanto dramaturgo e sempre numa perspectiva de sátira. “Quando falo de algo trágico tento sempre vê-lo com sarcasmo, evito o melodrama. Para mim o sarcasmo é a forma mais eficaz”, afirma. É essa a sua abordagem a Lucrécia e ao Borgia. “Aquela sociedade não é pior do que a nossa. Pelo contrário, havia em tudo aquilo uma vontade superior, a de deixar algo maior a quem viesse. Isso hoje não existe. A infâmia do mundo dos Borgia não é maior nem pior do que a actual.”


O discurso da infâmia
Não é a primeira vez que tem este discurso. Nas entrevistas que foi dando sobre o tema, várias vezes acusou a actualidade de ser pior do que o “deboche” borgiano. “O que faço ali é uma alegoria sobre os nossos tempos. A corrupção, a cobiça do poder, a extorsão do dinheiro aos pobres com a fundação de uma espécie de banca, o embrião do que hoje conhecemos como capitalismo.”

Lucrécia, a devassa, a incestuosa intriguista, a prostituta que usava a cama para servir interesses políticos, surge neste romance como alguém que não é mais do que um peão habilmente manuseado pelo pai, o Papa Alexandre VI, e pelo irmão, Cesare Borgia, o homem que inspirou Maquiavel a escrever O Príncipe em 1513, senhor de um poder absoluto. Ela é um exemplo de inteligência, determinação, que confrontou muitas vezes o pai e o irmão defendendo, corajosa, que sabia que era manipulada por eles”, continua Dario Fo.

Mais uma vez refere a necessidade de ler o tempo através da lente desse tempo e para isso cita Marion Johnson, uma investigadora inglesa. “Aquilo que Alexandre VI e o seu filho Cesare procuravam realizar não era mais do que a consequência lógica dos interesses de quem geria o poder. Os seus fins e os seus meios eram universalmente aceites, visto que entravam na tradição da arte política italiana e do seu vive e deixa viver.” A citação está no romance.

Apoiando-se em factos, citando referências, “o mestre” refaz o puzzle —“uma montagem ficcionada, claro”, sublinha —, uma montagem que, aliás, imita a de uma peça de teatro em duas partes, com Fo a dirigir o leitor como um encenador dirige as cenas num palco. É político o que ali se passa, mas há uma história bem estruturada que lhe serve para uma releitura da História onde pretende fazer uma ponte para a actualidade com uma mensagem: não se pode querer fazer reformas de modo eficaz sem substituir os homens que as fazem e os valores em que assentam os modelos decadentes. 

Quando Alexandre VI, zangado com os avanços do filho sedento de poder, dos vícios que ameaçavam o “edifício da Igreja, e de que o próprio Papa não estava inocente, longe disso, chamou ao Vaticano os “sábios” Copérnico e Novara para o aconselharem sobre a sua intenção de transformar totalmente a Igreja Romana que considerava estar a afastar-se cada vez mais do modelo de Cristo, eles disseram-lhe: “Se os reconstrutores exprimirem os mesmos sentimentos, hábitos, regras e comportamentos dos que foram afastados, ou forem os mesmos responsáveis disfarçados de inovadores, volta sempre a fazer-se o antigo.”

A mensagem foi escolhida para ser servida agora. “Pouco mudou. Talvez o espectáculo seja um pouco diferente”, afirma Dario Fo, que conta como montou o seu, o deste livro, onde tudo foi pensado para causar escândalo, sublinhar o grotesco, as orgias, o vício, a intriga palaciana que na essência se mantém, seja no modo como se dirigem os países ou como o Vaticano se rege. “Francesco pode o quê, é o quê se não uma farsa?”, refere sobre o actual Papa. Mas e o quase consenso, a simpatia, a abertura?, pergunta-se-lhe. “É quase uma cópia de Alexandre VI. A corrupção está lá. A reforma da cúria continua a ser uma urgência. Estamos a falar da consciência do homem religioso. É disso que também falo aqui.”                  

E Lucrécia surge como um alfinete dessa consciência. Ela que vestiu as vestes do Papa e pediu clemência e perdão e fez santas duas mulheres e pediu que olhassem os mais desfavorecidos. A personagem é construída desde a sua génese. Filha bastarda de Rodrigo Borgia, um jovem culto que sobe cedo a segunda figura da Igreja e há-de tornar-se no Papa Alexandre VI. Num tom jocoso, Fo narra a vida amorosa do clero de então e da relação de Rodrigo com várias “senhoras”. Alexandre VI, ou Rodrigo Borgia, não sai mal na fotografia de Dario Fo. O narrador refere-se a ele como um “evidente libertino mas com um certo pudor”, tudo certo segundo a chamada “hipocrisia padresca”. Conhece Giovanna Cattanei, conhecida como Vannozza, aos 31 anos e tem com ela cinco filhos.

Entre eles, Lucrécia e Cesare, os mais influentes na história que se segue, e que a tradição uniu numa relação incestuosa. Também se sugere o mesmo em relação a Lucrécia e ao pai. A rapariga, dotada, bela, mantinha uma relação muito afectiva com os dois homens, mas a tese deste livro é que era apenas isso, tão afectiva quanto conflituosa. Eles traçavam-lhe o destino, dando-lhe e tirando-lhe maridos ao sabor das suas alianças políticas. Ela fazia-lhes frente como podia. Sobre o incesto, insiste Fo, “nunca nada foi provado”.

Volta às “crónicas do tempo” como auxiliares dessa verdade que procura, “...davam a saber os acontecimentos mundanos mesmo que se desenrolassem no âmbito do próprio Vaticano, com naturalidade e sem intenção de causar escândalo. Mas quando no palco da história renascentista aparecem os Borgia, protegidos por uma avalanche de apoiantes, a começar pelos parentes mais próximos, o interesse do público, nacional e estrangeiro, aviva-se logo”. 
Episódios de vingança sanguinária, traições, crueldade são comuns, sobejamente relatados em versões mais e menos escandalosas ao longo de séculos.

Lucrécia casou três vezes, a primeira com 13 anos, com um escolhido do pai, mas o casamento seria anulado quatro anos depois. A aliança não interessava mais e o marido foi obrigado a assinar um documento onde se confessava impotente. Lucrécia voltou a casar aos 18 anos com o seu grande amor. Seria assassinado pelo irmão. Casou outra vez, com o senhor de Ferrara, a cidade exemplo. E a história voltou a mostrar que entre os Borgia “isso de mudar um projecto depois de o ter concretizado é absolutamente normal” conforme Lucrécia aprende cedo, tornando-se perita no decifrar dos sinais dessas movimentações e hábil a desembaraçar-se dos efeitos.


Lucrécia, a hábil jogadora
Sabedora das fraquezas dos homens, aprendeu a negociar como poucos e tornou-se ela mesma o símbolo de uma revolução que o pai seria incapaz de concretizar. Ele fazia parte do edifício doente. “Ela era uma força da natureza que tinha como referência gente que foi de facto revolucionária na Igreja”, salienta agora Dario Fo. Sem referir nomes, remete para o romance onde a vemos citar Santa Catarina e Frei Bernardino de Siena. É Fo na sua crítica ao capitalismo. Bernardino escreveu sobre a usura. Lucrécia agiu, segundo os pressupostos desse tratado, contra a agiotagem, quando tinha as rédeas do ducado de Ferrara na ausência do marido.

“Como conseguir participar numa comédia grotesca, sem máscara”, lê-se já perto do fim do livro, sobre a pantomima em que teve de participar, quando era uma mulher num tempo dominado pelos homens e pelos seus vícios. O que Fo faz não é um retrato de inocência, mas o modo de sobrevivência de uma mulher que não se rendeu à sua condição e a soube usar. Generosa, impetuosa, apaixonada, sacrifica-se a quem ama e despreza os homens que só vêm na arte “uma coisa útil”. Esta é a Lucrécia pintada por Fo, contraditória como Fedra na tragédia de Eurípides, quando se apaixona por Ippolito, “que despreza as mulheres e apenas pensa na caça”, lamenta-se à cunhada Isabella.

Voltamos à conversa, à síntese. “Ela é uma pessoa que se indigna. Isso falta, continua a faltar. Veja o que se está a passar à nossa volta.” E agora é a vez dele de responder à pergunta: divertiu-se? “Muito, não gosto de estar fechado na pintura ou no teatro. Posso voltar à minha exposição?”

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