“De pé, que é um órgão de soberania!”

Imperceptivelmente, como uma infeção lentamente progressiva, a cultura de “fechamento” nos tribunais avança, sorrateiramente, inconscientemente, sem culpa de nada nem de ninguém...

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Por natureza implícita, a administração da Justiça é um ato público. Era na praça central (ágora, fórum) que as civilizações clássicas preferencialmente julgavam e publicitavam as respetivas penas, à vista de todos, para controlo de todos, para exemplo de todos. E parece que até antes do "25 de Abril" (e logo depois, também) pelo menos os Tribunais da Boa Hora, em Lisboa, pululavam de gente: advogados, alunos de Direito, mirones, jornalistas à coca de histórias, etc., etc.

A cena passou-se recentemente, aquando do desencadeamento da Operação Influencer e das detenções associadas. Longas horas de espera dos jornalistas à porta do tribunal, no Campus da Justiça, em Lisboa.

Quando se diz à porta do tribunal é mesmo à porta do tribunal, do lado de fora, na rua (felizmente nesses dias não choveu). Acessos à casa de banho interditados após horário de fecho da secretaria judicial...

A certa altura, cansada, uma jovem jornalista de uma televisão sentou-se num murete baixo ali existente. Logo acorreu, diligente, o segurança do tribunal: "De pé, que é um órgão de soberania!"

Mais do que o caricato da situação (e, claro, o caricato do dito segurança e do seu conceito de órgão de soberania), o episódio ilustra um progressivo fechamento da Justiça sobre si mesma, local "privado" de acesso condicionado, “respeitoso e obrigado”!

Um exemplo: cada vez mais advogados necessitam de "tirar senha" nas portarias dos tribunais, como se de visitantes estranhos ao edifício se tratassem. Como se os advogados – quer se queira quer não – não fossem personagens intrínsecas de um tribunal, tão imprescindíveis como os magistrados, e o edifício apenas o sítio – público, por definição – onde se realizam os julgamentos.

É que os julgamentos também devem ter o seu lado didático… além do escrutínio público (mesmo que valha sobretudo o princípio e menos a efetividade).

Os exemplos de “fechamento”, porém, são vários e a vários níveis. Imperceptivelmente, como uma infeção lentamente progressiva, a cultura de "fechamento" nos tribunais avança, sorrateiramente, inconscientemente, sem culpa de nada nem de ninguém, motivos avulsos, menores, hoje porque até dá mais jeito ao sistema de segurança, amanhã pela falta de pessoal… A verdade é que o público e os demais estranhos são cada vez mais encarados como um incómodo, deambulam, atrapalham, testemunham, chateiam… E eis senão quando, de repente... fica-se a porta! Só o réu, esse tem sempre entrada franca!

E já agora, também um pouco de polidez e agradabilidade. Referimo-nos às situações dos cidadãos que, por exemplo, na sua função e dever cívico de serem testemunhas, e após uma manhã inteira de incomodidade física e prejuízo profissional, são despachados com um seco “hoje já não dá, volta cá para a semana…”. Nem um simples “desculpe”, um “tenha paciência”, qualquer gesto mais amistoso que fizesse esquecer que ir a um tribunal não tem de ser necessariamente um ato penoso, com gente mal disposta, como se cumpríssemos uma pena!

É bom recordar que a Justiça se exerce em nome do povo, da soberania do povo, e que é exatamente esse "abstrato" que constitui o tal órgão de soberania, consubstanciado em cada juiz individualmente considerado. Mas que é, formalmente e somente, um representante executante dessa soberania do povo. De onde, arredar o povo dos tribunais é, no mínimo, medida contranatura. Em última instância... ilegal!

Abram-se, pois, e de par em par, as portas dos tribunais… que é como quem diz, das mentalidades! Isto também é reformar a Justiça!

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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