Estudante português nos acampamentos pró-Palestina no MIT: “Não queremos fazer as armas do genocídio”
Baltasar Dinis, português de 24 anos, é doutorando no MIT, nos Estados Unidos, e um dos rostos dos protestos estudantis contra o que define como “genocídio em curso” na Faixa de Gaza.
Na semana passada, a polícia entrou no campus da universidade — sem aviso, durante a noite — para ordenar a retirada do acampamento estudantil que exigia um cessar-fogo nos territórios palestinianos. A operação terminou com vários jovens detidos por resistirem pacificamente a essa ordem. Foi assim na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa; e, poucas horas mais tarde, foi assim em Cambridge (EUA), no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês).
No MIT, que ainda acolhe projectos de investigação académica financiados pelo Ministério da Defesa de Israel, os estudantes fizeram-se ouvir: recusam ser "cúmplices de um genocídio". Baltasar Dinis, português de 24 anos doutorando em Ciência da Computação, é um dos rostos dos protestos das últimas semanas. O P3 ouviu o seu testemunho, dado de keffiyeh ao pescoço, a partir de Cambridge.
“Há uma ideia generalizada de que os protestos não devem perturbar, têm de ser uma demonstração que pode facilmente ser ignorada. É quase irrisório pensar que isso são os limites da liberdade de protesto. Os protestos têm sido maioritariamente pacíficos, enquanto a repressão policial tem sido desproporcionada, em todos os sentidos.
É óbvio que os protestos perturbam o funcionamento normal das instituições. Alunos de todo o mundo estão a opor-se à conivência das suas universidades com o genocídio na Faixa de Gaza. Não nos parece descabido que essas instituições não tenham um funcionamento normal enquanto são cúmplices de um genocídio em curso.
E o MIT tem um nível de cumplicidade superior. Temos projectos de investigação, inclusive no meu departamento, feitos directamente com o Ministério da Defesa de Israel [para produção e modernização de armamento]. Quando percebi essas ligações, fazer tudo o que me era possível tornou-se praticamente uma obrigação moral, mesmo que corra o risco de ser detido ou deportado.
A 21 de Abril, domingo à noite, começámos o nosso acampamento num jardim do campus da universidade. Desde o primeiro dia, apresentámos uma proposta escrita à administração, que incluía a desmobilização do acampamento em 48 horas caso se comprometessem com alguma das nossas exigências. Ao fim de uma semana, a 26 de Abril, tivemos a primeira e única reunião, em que o MIT adoptou uma postura quase mafiosa: a administração nunca fez nenhuma proposta escrita ou credível, falando várias vezes em tom de ameaça.
Se acho possível que exista uma grande pressão directa do departamento de Defesa ou do departamento de Estado norte-americano sobre o MIT, para não dar um passo que tem pouco impacto do ponto de vista orçamental, mas que é simbólico? É possível, sim. Mas é difícil compreender quando todo o corpo estudantil está unido [no apelo ao corte de relações com o Governo israelita], quando dizemos: 'Não queremos fazer as armas do genocídio, não queremos que a nossa investigação vá para um genocídio activo.' Quando a resposta é 'não', sendo usada a expressão 'liberdade académica', questiono-me: que liberdade académica pode existir para fabricar as armas de um genocídio?
E a cumplicidade é pervasiva, não se limita aos Estados Unidos, à venda de armas ou aos projectos de investigação. Quando, em Portugal, o ministro dos Negócios Estrangeiros recusa um genocídio [“Seria muito injusto dizer que Israel pretende eliminar o povo palestiniano”, em entrevista ao El País] e diz que ainda não é o momento oportuno para reconhecer o Estado da Palestina, só há duas hipóteses. Ou Paulo Rangel sabe o que está a acontecer e está a fazer uma jogada política, seguindo a política externa dos Estados Unidos e da União Europeia e tentando proteger Israel; ou não sabe o que está a acontecer, o que me faz questionar a idoneidade de um ministro que não consiga analisar a situação como ela é.
Note-se que uma das fases de um genocídio é a sua negação, é aí que estamos. Temos o dever de não ser passivos, de agir em concordância com os nossos valores, com os valores de Abril. Neste momento, tudo o que legitima as acções do Governo israelita é uma forma de cumplicidade. Saúdo com todo o coração as iniciativas estudantis feitas em Portugal e condeno a repressão policial na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa. Sabemos que os protestos serão ilibados pela história. Aconteceu com os protestos contra a guerra do Vietname, contra o apartheid na África do Sul, contra a guerra do Iraque.
Sempre me pareceu claro o paralelo entre a necessidade de libertação do povo palestiniano e a nossa própria libertação, em 1974. Na semana que antecedeu o acampamento no MIT, estava a acompanhar diariamente denúncias de uso de fósforo branco por Israel no Líbano, a destruição de escolas em Gaza, a repressão policial na Universidade de Columbia. Nesses dias, o Zeca [Afonso] foi uma constante. Adeus ó Serra da Lapa trazia-me a emoção de quem larga a sua terra, a pobreza, a fome – a profunda tristeza que às vezes a vida nos traz.
Sabia que tinha de assinalar o 25 de Abril no acampamento, porque 'a nossa liberdade é incompleta enquanto não existir liberdade para o povo palestiniano' [citação de um discurso de Nelson Mandela de 1997]. A nossa revolução também só se deu devido ao movimento de libertação dos povos em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau. Temos uma dívida que nunca será restituída aos povos que colonizámos, não só pela dor e opressão imperialista que exercemos, mas porque lhes devemos a nossa própria libertação. Encomendei 100 cravos vermelhos e distribuí-os no 25 de Abril, expliquei muitas vezes o que significava. Esses cravos existiram no acampamento até à última madrugada.
A ocupação do campus terminou na madrugada de 10 de Maio. Em poucos minutos, a presença policial, que pelas 3h30 era quase nula, tornou-se enorme: polícia do MIT, polícia de Cambridge, corpo de intervenção [ou polícia de choque], polícia estatal [chamados state troopers], bombeiros. Eram cerca de 200 agentes do corpo de intervenção para desmantelar um acampamento de 50 alunos. Às 4h foi dada a primeira ordem de dispersão. Pelas 4h15 já tinham sido detidos dez alunos, acusados de invasão de propriedade. Foi quem ficou para trás, quem fez resistência passiva. Perto das 4h30 já a maior parte da polícia tinha desmobilizado.
O acampamento era apenas uma táctica. Este não é o fim nem o propósito da nossa acção. O nosso propósito é o fim do genocídio do povo palestiniano e do sistema de apartheid do Estado de Israel.”