Projecto Paola vai “abrir a caixa de Pandora” dos abusos nas universidades — e quer conhecer o teu caso

Vai ser um site de recolha de informação sobre comportamentos antiéticos em universidades europeias. Em Setembro começa a recolher testemunhos anónimos. Depois vai expô-los em relatórios.

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O projecto Paola vai abrir a caixa de Pandora dos abusos nas universidades — e quer conhecer o teu caso Manuel Roberto
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Francisco Valente Gonçalves já sonhava ser psicólogo em criança. Sem surpresa, foi a área que escolheu quando foi para a universidade (já lá vão alguns anos) e quando decidiu fazer o mestrado em Psicocriminologia. Até aqui, recorda ao P3, a vida académica corria bem, mas foi quando ingressou no doutoramento no Reino Unido que se apercebeu da “bola de neve” de abusos de poder e discriminação de que os colegas eram alvo.

Soube de casos de alunos e investigadores impedidos pelos professores de utilizarem o dinheiro que recebiam para os projectos como entendiam, outros pressionados pelos supervisores para publicarem mais estudos que garantiam mais financiamento às universidades, e muitos com medo de denunciar estes abusos porque, afirma o psicólogo, “sabiam que fazê-lo podia prejudicar-lhes o futuro”.

Foi a pensar em tudo isto que, em Janeiro, se juntou ao projecto Paola (Pandora Box of Whistleblowing in Academia), observatório europeu que, em português, quer dizer algo como a Caixa de Pandora dos Informadores no Contexto Académico. O site vai ser lançado em Setembro para receber as denúncias de estudantes universitários, de professores, investigadores ou funcionários das universidades que estejam ou já foram alvo de abusos.

“Vai funcionar como canal de recolha de informação sobre comportamentos antiéticos. Os académicos podem reportar os casos e as universidades também. Um dos nossos objectivos é que as instituições académicas publiquem nos seus relatórios de final de ano quantos casos de comportamentos antiéticos receberam, o que aconteceu, que medidas correctivas foram aplicadas e quantos processos continuam abertos. Quando isso acontecer, estamos a trabalhar num canal de transparência e de boas práticas”, explica Francisco Gonçalves.

No entanto, salienta o psicólogo, isto não significa que o Paola vai investigar uma determinada instituição de ensino superior sempre que receber uma denúncia sobre ela, uma vez que não tem poder legal para o fazer. Em vez disso, as queixas serão destacadas nos relatórios do projecto, salvaguardando a identidade dos informadores ou denunciantes, e reportadas às respectivas universidades, que serão incentivadas a agir contra os abusadores.

Além de Portugal, o site vai contar com a participação de especialistas de vários países, incluindo Itália, Alemanha, Bélgica, Países Baixos e Irlanda que vão primeiro analisar os abusos que acontecem no meio académico de cada país e perceber que consequências tiveram na saúde mental das vítimas, para, depois, tratarem as novas denúncias.

Este observatório europeu é financiado pela Comissão Europeia, através do programa Erasmus+, até Dezembro, mês em que deveria terminar. No entanto, garante o psicólogo, são várias as organizações interessadas em continuar com a plataforma, que vai existir "durante o máximo de tempo possível”.

Primeiro ano: assédio, abuso e discriminação

Até ao final de 2024, a equipa do Paola vai centrar-se em expor temas como assédio, abuso de poder e discriminação, três comportamentos que, segundo Francisco Gonçalves, acontecem com grande frequência no meio académico. Em Portugal, recorda o caso do sociólogo Boaventura de Sousa Santos, da Universidade de Coimbra. No Reino Unido, há casos que nunca chegaram a vir a público.

“Se um bolseiro fizer uma denúncia numa universidade e o caso chegar a alguém com poder, o estudante vai ser convidado a sair, ou vai ser alvo de discriminação, gasligthing [distorcer informações da vítima a favor da pessoa acusada] e começa a ver a carreira diminuída ao ponto de ter de escolher entre aguentar pressão ou sair”, destaca o psicólogo de 36 anos.

“Os académicos são obrigados a comportar-se como vítimas de violência doméstica neste tipo de situações — são eles que têm de sair em vez de ser a pessoa que está a perpetuar o comportamento antiético. E têm medo de mais represálias”, acrescenta.

Como o Paola é um projecto externo a qualquer universidade, as queixas nunca vão chegar aos abusadores. Denunciar é e será sempre gratuito, tal como o acesso às informações legais depois de uma queixa, que estarão no site.

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Francisco Valente Gonçalves é psicólogo e um dos membros do projecto Paola Francisco Valente Gonçalves

Denunciar e dar apoio psicológico

Um dos objectivos do projecto passa por assegurar o acompanhamento psicológico de académicos que o desejem, através de uma rede de psicoterapeutas de vários países. Francisco Gonçalves faz este tipo de trabalho na Rumo, plataforma que surgiu em 2017 para dar consultas de saúde mental online e um dos parceiros do Paola.

“As pessoas não podem simplesmente contar numa conversa de café que submeteram uma queixa e são denunciantes. Estas regras podem levar a isolamento, ansiedade e até depressão e tem de existir, a seu tempo, uma estratégia para promover o bem-estar [dos denunciantes]”, defende.

Para a equipa do Paola, denunciar todos os casos de assédio e abuso que acontecem nas universidades europeias é uma forma de aumentar a consciência e acabar com as irregularidades hierárquicas ainda escondidas.

“Quando atribuir financiamento às universidades passar pelo índice de integridade da instituição e não depender exclusivamente do número de estudos publicados, o trabalho do Paola poderá continuar numa óptica de auditoria. Até lá, continuamos com este tipo de iniciativas para chamar a atenção.”

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