Subscrição por um bidé monumental em espaço público

Em vez da evocação singela que uma vigília justificaria (porque não numa placa do chão junto à Capela do Rato?), optou-se por um totem de escala e estética disruptivas.

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Numa altura em que toda uma classe inteira de técnicos exulta com o previsível fim do “bidet” nas casas de banho, pré-anunciado que foi no mais recente “Simplex urbanístico” e consignado no Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU) –​ não tanto por isso resultar de um câmbio nas práticas higiénicas lusitanas mais íntimas, nem de um novel “alinhamento estratégico” ao Norte dos países mediterrânicos, num adeus ao historicismo popularizado por Mme. de Pompadour (na realidade o bidé nunca foi muito popular nos países da Europa do Norte), muito menos de uma qualquer cabala contra os fabricantes nacionais de loiça sanitária , mas tão-só a realidade, nua e crua, de as novas construções virem a ter cada vez uma menor área útil destinada a casas de banho (as banheiras que se organizem…).

É também altura para se requerer a quem de direito a instalação de um grandioso bidé em espaço público!

Não faltarão artistas para o esculpirem de forma imponente e provocatória, qual Duchamp, nem doadores para o subscreverem, evitando-se o recurso aos cofres públicos, muito menos faltarão os jardins e alamedas adequadamente centrais para o receberem condignamente no espaço público, de preferência no centro histórico, onde todos passam e o admiram, ou junto ao rio, obstruindo panorâmicas, objectivamente inferiores ao deleito cognitivo que emanará da obra.

O leitor que me desculpe este intróito desparafusado, mas há uma explicação para isso acontecer, que se prende com o acumular sucessivo, e em crescendo rápido nos últimos anos, de um sem-número de “instalações artísticas” que vão nascendo como cogumelos um pouco por toda a cidade de Lisboa (a prática não lhe é exclusiva, sublinhe-se), umas impingidas a quem de direito, outras adjudicadas a terceiros sabe-se lá porquê, desde bustos metálicos esfarrapados a bolas e cubos em pedra, artefactos estapafúrdios os mais diversos, com dimensões as mais variadas e que são plantados onde lhes dá na gana, literalmente.

Foto
O memorial da vigília da Capela do Rato, da autoria de Cristina Ataíde:, foi inaugurado a 25 de Março Cláudia Teixeira/Comissão Comemorativa 50 anos 25 Abril

A prática não é de agora, muito longe disso, mas tem-se agravado nos últimos anos, sendo o exemplo mais recente e gritante, de algum modo a cereja em cima do bolo, a “escultura-memorial” inaugurada há pouco em pleno Jardim das Amoreiras, e em que, para que tal fosse construído, não se hesitou em retirar um talhão verde a um jardim histórico, impermeabilizando-se o respectivo solo com cimento e pedra, com a justificativa, certamente nobre para quem a idealizou (a Comissão Comemorativa dos 50 Anos do 25 de Abril … imagino que a expensas do erário público), de assim se evocar a vigília da Capela do Rato de 1972, contra a Guerra Colonial.

Mas em vez da evocação singela que uma vigília justificaria (porque não numa placa do chão junto à capela, por exemplo), optou-se por desafiar o “génio criador”, a marca de autor, um totem de escala e estética disruptivas.

Local? Pois dê-se-lhe um talhão de um jardim romântico em praça histórica, que ainda que perto da capela nada tem de ligação à Revolução, antes ao Marquês de Pombal, “et-voilà”, quiçá calhará melhor…

Que isto tudo aconteça no preciso momento em que a Assembleia Municipal de Lisboa aprovou, a propósito da petição “pela retirada das esculturas colocadas na Praça do Município e no Passeio Carlos do Carmo e pela constituição de um Regulamento de Obras de Arte em Espaço Público”, que se deliberasse recomendar à CML a criação de um Grupo de Trabalho para esse efeito, sendo o mesmo obrigatoriamente consultado “quer se trate de aceitação de obras de arte a instalar no espaço público, quer se trate de aquisição”, é no mínimo caricato e elucidativo do estado de coisas.

E agora?

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