Direitos das Crianças e Inteligência Artificial

Unir esforços de especialistas técnicos, reguladores e sociedade civil através da análise e regulamentação de “casos de uso” pode garantir um progresso tecnológico benéfico e centrado na criança.

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A deputada Maria João Leitão Marques em Gondomar Clara Vieira Rodrigues
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Com os 50 anos da Revolução de Abril em Portugal e os resultados das eleições é inevitável reflectir sobre o papel do Estado de Direito na proteção e promoção dos direitos humanos, em particular das crianças.

Em 1986, Portugal deu um importante passo ao aderir à Comunidade Europeia; e em 1989, os líderes mundiais assumiram um compromisso histórico com as crianças do mundo, adoptando a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (CDC), em vigor desde 1990. O documento reconhece as crianças como sujeitos de direitos e a infância como período especial e protegido, no qual devem poder crescer, aprender, brincar e participar em decisões que lhes digam respeito.

O mundo altamente digitalizado em que as crianças vivem hoje apresenta novos desafios ao Estado de Direito. O ritmo acelerado da inovação tecnológica, a globalização e complexidade das implicações das tecnologias emergentes, em particular da inteligência artificial (IA), dificultam a criação de regulamentos ágeis e eficazes e exige aos governos novas formas de atuação que salvaguardem os direitos fundamentais das crianças.

Orientações da UNICEF sobre a Inteligência Artificial (IA) para as crianças

A UNICEF desempenha um papel fundamental ao desenvolver orientações de políticas sobre as tecnologias para crianças, em colaboração com as próprias crianças e com especialistas. Estabeleceu recomendações concordantes com a CDC, direcionadas a governos e empresas que desenvolvem, implementam ou utilizam sistemas de IA, em nove requisitos, incluindo a perspectiva da criança:

  1. Apoiar o desenvolvimento e bem-estar das crianças: "Deixa que a IA me ajude a desenvolver todo o meu potencial."
  2. Garantir a inclusão de e para as crianças: "Inclui-me a mim e aos que me rodeiam."
  3. Dar prioridade à justiça e à não-discriminação das crianças: "A IA deve ser para todos."
  4. Proteger os dados e a privacidade das crianças: "Garante a minha privacidade na IA."
  5. Garantir a segurança das crianças: "Preciso de estar seguro no mundo da IA."
  6. Fornecer transparência, explicabilidade e responsabilidade pelas crianças: "Explica-me como é que a IA me afecta e determina quem se responsabiliza."
  7. Capacitar os governos e as empresas com conhecimentos sobre IA e os direitos das crianças: "Todos devem saber quais são os meus direitos e defendê-los."
  8. Preparar as crianças para o desenvolvimento actual e futuro da IA: "Se estiver bem preparado, contribuirei para uma IA responsável no futuro."
  9. Criar um ambiente propício: "Possibilitar que todos contribuam para uma IA centrada em nós."

Primeira lei mundial é europeia

Paralelamente, a União Europeia (UE) aprovou a primeira lei mundial sobre a IA, um marco histórico decorrente de um processo legislativo que se iniciou antes da pandemia. Há poucos dias, no evento “Educare Gondomar - Education Summit 2024”, tive a oportunidade de assistir à apresentação da lei pela eurodeputada Maria João Leitão Marques, que resumiu os pontos essenciais do documento de 500 páginas.

O documento salienta os direitos fundamentais das crianças, consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da UE e na CDC, no que se refere ao ambiente digital, exigindo que sejam considerados na avaliação do impacto dos sistemas de IA, fornecendo proteção e cuidado necessários ao bem-estar. O regulamento centra-se na abordagem baseada no risco e, em aplicações incongruentes com os valores europeus, incluindo a proteção específica dos direitos das crianças proíbe algumas aplicações:

  • reconhecimento emocional na sala de aula;
  • brinquedos inteligentes que exploram as vulnerabilidade das crianças;
  • identificação biométrica em tempo real no espaço público;
  • sistemas de seleção discriminatórios, com impacto nos direitos e que também afetam indiretamente as crianças.

A eurodeputada, clarificou que a lei aposta na confiança pela literacia e conhecimento do risco e que é a posição da Europa em defesa dos direitos humanos. Quando questionada pela audiência se ficaríamos para trás em relação a outros países esclareceu que a tecnologia é regulamentada de forma a mitigar riscos sem criar barreiras à inovação e lembrou o “efeito Bruxelas”, a influência da UE nas regulamentações globais adotadas por outros países, como já aconteceu com o Japão e os EUA.

Unir esforços de especialistas técnicos, reguladores e sociedade civil através da análise e regulamentação de “casos de uso” pode garantir um progresso tecnológico benéfico e centrado na criança, salvaguardando os seus direitos fundamentais no ambiente digital, no contexto da IA. A eurodeputada acrescentou que a proteção dos direitos fundamentais das crianças é uma prioridade central da UE e que as crianças serão a principal preocupação para o próximo mandato.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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