Maryse Condé (1937-2024), a voz mais importante das letras das Caraíbas

Eterna favorita do Nobel da Literatura, deixa uma vasta obra. Em Portugal tem editados Eu, Tituba, Bruxa... Negra de Salem , À Espera da Subida das Águas e O Evangelho do Novo Mundo .

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Maryse Condé fotografada em 2008 em Saint Malo Ulf Andersen/ Getty Images
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A escritora guadalupense Maryse Condé, autora de uma vasta obra que a consagrou como a voz mais importante das letras das Caraíbas e que lhe deu, em 2018, o Nobel alternativo da literatura, morreu aos 90 anos, na madrugada desta terça-feira, num hospital de uma pequena localidade do Sul de França. A causa da sua morte, noticiada e confirmada pela agência France Presse, não foi revelada, mas a escritora tinha sofrido um acidente vascular cerebral e uma doença neurológica que a obrigou a ditar o seu derradeiro romance.

Voz de Guadalupe, mas também da diáspora negra derivada do colonialismo e do tráfico de escravos, Condé morreu no hospital de Apt, na região de Vaucluse, no Sul de França e perto do principado do Mónaco. Era há muito uma habitante da região, especificamente em Gordes, embora visitasse Paris com frequência.

Maryse Condé tinha na sua escrita e na sua postura cívica um forte sentido de missão. “Descreve os danos do colonialismo e o caos do pós-colonialismo" com "uma linguagem precisa”, como disse em 2018 a presidente do chamado Nobel alternativo, Ann Pålsson, que presidiu ao júri. A autora mais velha alguma vez nomeada para o Prémio Booker Internacional, aos 89 anos e em 2023, eterna favorita do Nobel da Literatura, foi só graças ao hiato de 2018, causado pelo escândalo de assédio sexual e corrupção que ensombrou a Academia Sueca, que recebeu o “Nobel alternativo”.

"Era a segunda vez que um escritor de Guadalupe recebia um prémio desta importância. Em 1960, o poeta Alexis Léger, conhecido como Saint-John Perse, foi galardoado com o Nobel. Não se pode imaginar um contraste mais perfeito: ele, descendente da orgulhosa casta dos békés, crioulos brancos, instalados na ilha desde o século XVIII; eu, descendente de escravos africanos que atravessaram o Atlântico carregados como animais no ventre dos navios negreiros", escreveu a autora na New York Review of Books após a distinção.

"Para além de estar orgulhosa e feliz, senti-me aliviada. Pela primeira vez, estava em paz comigo própria. Há anos que escrevia sem qualquer reconhecimento especial. Quando os franceses distribuíam os seus famosos prémios literários todos os Outonos – o Goncourt, o Femina ou o Renaudot –, eu nunca era nomeada."

Na altura, não havia qualquer romance da escritora publicado em Portugal. Desde então foram editados Eu, Tituba, Bruxa... Negra de Salem (Maldoror, 2022), sobre os infames julgamentos de mulheres em Salem, À Espera da Subida das Águas (Quetzal, 2023), sobre um médico canadiano de origem guadalupense que se vê com uma criança nos braços e se muda para o Haiti, e O Evangelho do Novo Mundo (Livros do Brasil, 2024). Foi este o seu último livro, do qual o PÚBLICO pré-publicou um excerto. Nas dedicatórias nas primeiras páginas, Condé escreve que este livro, passado numa "terra rodeada de água por todos os lados, uma ilha, como se costuma dizer, não tão grande como a Austrália, mas nem por isso pequena", é uma "homenagem a José Saramago". A tal terra "é maioritariamente plana, mas cinzelada com densas florestas e dois vulcões".

Foi para Paris aos 16 anos, já com o liceu terminado em Guadalupe. Passou dois anos na Universidade Fénelon Sainte-Marie, mas foi expulsa. Entretanto casou-se com o actor Mamadou Condé, tornando-se mãe de quatro filhos. No último ano do seu casamento com Condé, já a relação estava tensa, mudou-se para a Costa do Marfim, onde foi ensinar. Tinha 22 anos. Regressada a Paris, a sua consciência política e a influência dos escritos de Karl Marx levaram-na a outros périplos. Doutorou-se em Literatura Comparada e Inglês pela Sorbonne, entregando os filhos a Mamadou Condé — uma decisão "dura", diria numa entrevista — viajou pela Guiné-Conacri, Gana, Senegal.

Hérémakhonon (1976), o primeiro livro a ser publicado, foi uma pedrada no charco. O título significa "à espera da felicidade" em malinqué (mandinga), falado por etnias da zona da Gâmbia, Mali, Guiné Guiné-Bissau ou Senegal. Nele expunha as condições miseráveis de vida na Guiné-Conacri, por exemplo. O livro foi mal recebido e seis meses depois seria retirado de circulação. "Naquela época, quando o mundo inteiro falava do sucesso do socialismo africano, atrevi-me a dizer que os países africanos recém-independentes eram vítimas de ditadores dispostos a matar a sua população à fome."

"Pessoas como nós não escrevem"

Apesar de tanto viajar, Maryse Condé, nascida em Pointe-à-Pitre em 1937 e com o apelido Boucolon, mantinha a sua relação umbilical com Guadalupe, ainda hoje um território ultramarino francês, e sempre grata aos pais que, tornando-a a mais nova de oito irmãos, diz terem-na mimado. A mãe, a primeira professora negra em Guadalupe, fundou uma escola para raparigas. Sendo católica, repreendia a filha pelas "mentiras" que criava quando a menina escrevia as suas primeiras histórias. O pai fundou uma cooperativa bancária. "Por pouco não me tornei escritora. Apesar da educação que recebi dos meus pais, que pertenciam a uma embrionária burguesia negra, era uma criança tímida, anti-social e vulnerável. O mundo que me rodeava em Guadalupe parecia um enigma assustador", escreveu no mesmo texto na New York Review of Books, um franco ensaio intitulado Dar Voz a Guadalupe. Começou a escrever aos 11 anos.

Editou mais de duas dezenas de livros — destaque para Ségou (uma história em dois volumes passada na região homónima, actual Mali, e que se foca numa família real no reino Bambara para retratar a fealdade e destruição do colonialismo, da imposição de diferentes credos e do tráfico de escravos, editados em 1984 e 1985), ou Desirada (1997), sobre três mulheres de três gerações que se passa entre Paris e as Índias Ocidentais. Não se ficou pelo romance: foi dramaturga, autora de literatura infantil, ensaísta — um ensaio, ou texto autobiográfico central, é Victoire, les Saveurs et les Mots (2006), sobre a culinária e a avó. Na pré-adolescência, e "apesar da minha juventude, já estava a preparar na minha cabeça uma ode à minha avó Victoire, cozinheira de uma família de crioulos brancos e prisioneira do seu analfabetismo, da sua iliteracia, do seu género e da sua condição de criada".

Aos dez anos, uma amiga professora da sua mãe deu-lhe O Monte dos Vendavais. Emily Brontë deixou-lhe uma marca para toda a vida, mas a amável professora reagiu de forma desconcertante à vontade de Maryse de escrever: "O que é que estás para aí a dizer? As pessoas como nós não escrevem..." Em casa, além de se promoverem viagens regulares a Paris, não se falava crioulo, mas da cultura francesa. A ascendência africana não era um tema.

O inferno e o paraíso

"Durante o século XVIII, os missionários e os viajantes chamavam a Guadalupe uma ilha paradisíaca. Fechando os olhos às condições dos escravos que trabalhavam no inferno das plantações de cana-de-açúcar, os colonos preferiam gabar-se do clima e das paisagens majestosas. Até a população indígena acabou por ser convencida por essa contraverdade. Hoje, tais mitos não resistem ao ambiente sombrio que reina na ilha", escreveu após ser laureada. "Não é fácil pertencer a esta parte do mundo."

Condé casou-se com o seu tradutor e companheiro do resto da vida, Richard Philcox, em 1982. Fundou o Centro de Estudos Franceses e Francófonos na Universidade de Colúmbia em 1997, em Nova Iorque, depois de ter recebido uma bolsa Fulbright após o segundo volume de Ségou; leccionou Literatura Francófona também em Harvard. Presidiu, em 2004, à Comissão Para a Memória da Escravatura, em França. De facto escaparam-lhe o Goncourt, o Femina, o Renaudot. Recebeu o Grand Prix Littéraire de la Femme em 1986, o Prix de l’Académie Française em 1988, e Prix Carbet de la Caraibe em 1997. A Legião de Honra francesa foi-lhe atribuída em 2004, um ano antes de se reformar do ensino académico. Acreditava que a sua ilha, cuja independência defende, continua a ser "mágica" e "ainda tem o poder de dizer não".

Deixa "uma obra magistral", como escreve o diário francês Le Monde no seu obituário esta terça-feira. “A sua recusa em aceitar os grilhões da identidade e os rótulos convenientes — não, não era uma romancista francófona, escrevia como ‘Maryse Condé’ —, a sua lucidez e a sua ironia mordaz contribuíram para tornar a sua voz singular. A sua perda é imensa”, postula no Le Monde Gladys Marivat, jornalista e licenciada em Literatura. Uma voz franca, directa, sobre a negritude, o género, a sexualidade, o colonialismo e as contradições da esquerda e direita, cruzou-se com Che Guevara, Malcolm X, Maya Angelou, Laurent Gbagbo ou Ousmane Sembène.

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