Liberdade, anonimato e Infeções Sexualmente Transmissíveis

Publicitar a identidade das pessoas que são portadoras de IST, de que forma for e em que sistema for, seria uma “involução”, um “retrocesso” da sociedade.

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Foi amplamente noticiado, nas últimas semanas, que a Direção-Geral de Saúde (DGS) estaria a ponderar acabar com o anonimato em casos de infeções sexualmente transmissíveis (IST), no seguimento dos dados sobre o substancial aumento na propagação daquela tipologia de infeções, impondo a notificação obrigatória, à semelhança do sarampo.

A diretora-geral de Saúde, Rita Sá Machado, afirmou: “Neste momento, temos um problema com a anonimização dos doentes com infeções sexualmente transmissíveis (…). É um tema sensível, mas temos de evoluir e começar por colocar as questões em cima da mesa”.

A diretora-geral considera: 1) que a regra atual é problemática e que 2) a possibilidade de abdicar do anonimato poderia representar uma “evolução”, isto é, progresso no sentido adequado.

Perante esta perspetiva, urge apresentar a antítese: publicitar a identidade das pessoas que são portadoras de IST, de que forma for e em que sistema for, seria precisamente a antítese da “evolução” – uma “involução”, um “retrocesso” da sociedade.

Por um lado, e contrariamente ao sarampo e covid-19, as IST não se transmitem através de gotículas e, portanto, da tosse, espirros, fala, etc. Somos infectados com covid sem ser verdadeiramente possível lembrar onde, precisamente porque o mero gesto de respirar nos expõe à transmissão, fator aterrador em 2019, quando não se conheciam os impactos da doença.

Por outro lado, face ao risco presente em cada exposição a um contacto sexual, a liberdade de cada um representa o fator preponderante. A exposição ao risco não faz com que se mereça “mais” que a transmissão ocorra: essa visão é culpabilização por parte de uma teologia controladora que tem despudoradamente fomentado a ignorância sobre os riscos e o modo de os reduzir, em particular junto de populações vulneráveis e com menos acesso a cuidados de saúde, causando mortes indiscutivelmente reais. Os fanáticos da abstinência sexual dos outros – e não os que se abstêm sexualmente como mais uma decisão soberana, entre outras possíveis – são um flagelo conhecido, ultrajando-se com as decisões alheias e procurando impedi-las – quem for velho o suficiente lembrará facilmente as puritanas polémicas com a disponibilização de preservativos, recorrentes nos media na viragem do século, atualmente em círculos mais discretos.

As IST representam um conjunto de infeções agrupadas precisamente pela sua forma de propagação central e pressupõem uma decisão de fazer ou não sexo e, implicitamente, de se expor ou não ao risco de contrair aquelas infeções, para além de procurar atenuar ou não esse risco. Daí o caráter particularmente horrendo da violação sexual: é impor violência pura, negar ao outro a ação, a escolha e, portanto, destruir o mais íntimo da sua liberdade.

O anonimato ou publicitação da identidade das pessoas com IST não é uma questão fundamentalmente médica, e, portanto, os profissionais de saúde não estão mais habilitados a decidir sobre ela que qualquer outro cidadão. É uma questão ética e política, sobre o modo como somos e o tipo de sociedade que queremos.

Retirar a possibilidade de anonimato é fazer equivaler a pessoa seropositiva que segue tratamento e poderá ou não ter uma carga viral indetetável àquela que não segue qualquer tratamento, ao mesmo tempo que se ignora a pessoa infetada que não se testou. É estigmatizar e desencorajar a testagem, fazendo corresponder um diagnóstico a uma etiqueta consultável num sistema, dizendo muito pouco sobre a infeção e vulnerabilizando os infetados. Assim, retira-se à pessoa a sua soberania, porque deixa de ser decisora na informação relativa ao seu corpo, que seria agora, em maior ou menor grau – mas sempre – pública a partir do momento da testagem.

O objetivo da ação dos Estados democráticos caracteriza-se pelo aprofundamento da liberdade que os constitui. Trata-se de encarar o ser humano como portador de uma intimidade irredutível, que deve ser celebrada e cultivada. Precisamente porque esta conceção recua visível e diariamente, é urgente defendê-la. As estratégias implementadas durante a pandemia, cuja avaliação ou moralização não nos ocupam aqui, “colocaram na mesa” possibilidades (estado de exceção) cuja inadmissibilidade num Estado em normal funcionamento importa agora reiterar, sob pena de as sociedades democráticas deixarem de o ser.

A redução na propagação das IST passaria antes por uma educação para a liberdade, incluindo sexual, projeto que parece estar a retroceder, perante o medo dos decisores políticos do qualificativo “progressista” ou o ainda do mais temido woke. A ignorância generalizada sobre conhecimentos essenciais neste âmbito alcançados nos últimos anos, como “U=U” [Undetectable = Untransmittable] ou os benefícios da profilaxia no caso do VIH são bons exemplos. Pouca gente sabe que ser portador daquela IST é argumento suficiente para recusa de entrada ou expulsão em múltiplos países e que a testagem é obrigatória para instruir processos de autorizações de residência, incluindo em Estados-membros da União Europeia.

Acresce que os sites dos hospitais e da DGS e outras bases de dados são alvos de ataques informáticos constantes. O registo não anonimizado das pessoas com infeções sexualmente transmissíveis corresponderia, mais tarde ou mais cedo, à obtenção desses dados por entidades nefastas, que prontamente os comercializariam e instrumentalizariam de outros modos. O acesso a tais informações por seguradoras, empregadores, empresas de marketing, entidades bancárias, seria assim apenas uma questão de tempo, com consequências distópicas para as pessoas infetadas.

O objetivo de facilitar a identificação e acompanhamento de contactos de risco, para além de procedimento de eficácia questionável e formalização de uma espécie de delação sexual fomentada pelo Estado, valeria a troca da liberdade pelo descanso ficcionado da demissão dos cidadãos quanto aos riscos implícitos na atividade sexual. Seria passo decisivo rumo a um mundo esterilizado, exorcização aparente da exposição, em prol de um aprofundamento da estigmatização e culpabilização das pessoas com IST.

Portanto, seria útil ao debate a improvável participação na vida pública dos académicos das ciências sociais e humanas, quase todos cinicamente instalados no torpor catedrático das suas torres de marfim, higienizadas com os brasões de um Foucault morto por complicações agravadas por uma IST, a dissertarem no seu onanismo abstrato e convenientemente alheados de exemplos concretos de tentativas de avanço do biopoder e biopolítica, como este.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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