Existir sem tocar

Os sistemas imunológicos estão mais reativos, os organismos mais alérgicos ao contacto. Ao toque. À proximidade. Ao encontro. Os corpos cada vez mais prontos a desencadear uma reposta excessiva.

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"Maldito bicho-carpinteiro!" Rita Lagarto
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Sempre que entro num museu, seja de que género for, sou tomada pelo estranho sintoma (?) / alergia (?) / moléstia (?) / vírus (?) cujo genoma até hoje não terá sido descodificado, o fenómeno conhecido por bicho-carpinteiro. Essa súbita inquietação ou comichão, que domina a ponta dos dedos e os impele a tocar nas coisas, nos objetos, no Mundo ao redor.

Não raramente sinto o meu corpo capturado nessa espécie de hipnose sensorial, de vontade incontrolável de espreitar a textura irresistível de uma tela pintada a óleo com as almofadinhas dos dedos, ou de experimentar com a palma da mão o tronco esculpido e liso de uma escultura de mármore muito antiga e muito valiosa que se resguarda atrás de uma corda estrategicamente esticada, ou de um risco desenhado no chão: “Por favor: não mexer!” Mas o que é um tracinho no chão para uma mão ávida do prazer tátil das terminações nervosas sobre a matéria? — mesmo quando “a matéria” é muito antiga, muito valiosa e deu um trabalhão a restaurar.

O pior é que, por vezes, acontece que esse formigueiro, essas cócegas debaixo da pele, transpõem as paredes dos museus e das galerias, e o bicho-carpinteiro morde no meio da rua, entre as pessoas — o que é arriscado, pois não é propriamente conveniente andar por aí a tocar em pessoas alheias na via pública —, por muito esculpidas e lisas que sejam! É que nos animais, nos cachorrinhos ainda há desculpa: “Oh que fofinhoooo! Ah é tão lindo… Posso fazer uma festinha?...” Agora fazer festinhas em desconhecidos, convenhamos, pode ser mal interpretado! É quase tão grave como deixar uma dedada gordurosa num original do Van Gogh.

Um anti-histamínico para crises de bicho-carpinteiro poderia ser uma solução eficaz para essa espécie de prurido sazonal, mas que a indústria farmacêutica não parece empenhada em inventar. Explicou-me um dia a minha alergologista, que as alergias são uma resposta exagerada e excessiva do sistema imunológico contra substâncias que entram em contato com o organismo. As alergias parecem ter aumentado muito nos últimos anos entre a população, algumas terão duplicado.

Os sistemas imunológicos estão cada vez mais reativos, os organismos cada vez mais alérgicos ao contacto. Ao toque. À proximidade. Ao encontro. Os corpos cada vez mais prontos a desencadear uma reposta excessiva. As mãos que se lavam depois de mexer, o rosto que se limpa depois de encostar; a pele que se esfrega depois de tocar; o abraço que se abrevia; a boca que se tapa: a língua que se guarda para não ficar solta — que as palavras também servem para tocar (e há pessoas com alergia às palavras, sobretudo àquelas que provocam reações, que afetam a respiração, que apertam o peito, que congestionam e inflamam)… E há a roupa que se desinfeta e lava com água muito quente; a roupa que encolhe quando seca; o corpo que se encolhe, que fica sem espaço, que se reduz e já não sabe como tocar. Os corpos que secam e endurecem como peças de Lego que se esqueceram de como se encaixam para erguer construções coloridas. Peças soltas, incapazes de se ligar. Pessoas soltas, desencorajadas de se encontrar.

Porque, convenhamos… é preciso coragem para o encontro, quando tudo parece projetado e armadilhado para o desencontro: quando a arquitetura do mundo nos parece querer afastar dos outros. Quando o desenho dos dias nos impele a avançar para uma velocidade sem rédeas, centrífuga, para produzir, render, executar, resolver, de preferência sem tocar! “Por favor, não mexer. Existir. Sem tocar. Como num museu. Mas um museu em circulação, um museu que não para quieto, um museu a turbo (!), um museu cheio de obras vivas, desejosas de serem manuseadas, tateadas, experimentadas, fartas de se esconderem atrás da redoma, do vidro anti quebra, ainda assim, prontas a disparar o alarme quando por descuido um visitante atravessa o risco, quando trespassa a linha e se aproxima: “Please… Ma’am? Don’t touch!”

Nos filmes de ação de Hollywood há frequentemente uma cena em que o herói tem de atravessar uma sala cheia de sensores, uma rede de fios de laser prontos a desencadear uma explosão se forem trespassados pelo corpo, e dos quais o herói precisa de se desviar para chegar ao tesouro, ao cofre, à fortuna! Na sequela Ocean’s Twelve, o “assaltante” Vincent Cassel executa uma elegante travessia acrobática entre estátuas renascentistas de um museu romano, esgueirando-se ágil no meio das linhas de laser púrpuras ameaçadoras que rasgam o ar, categóricas, enquanto ele, ligeiro, avança sem nunca lhes tocar.

Muitas vezes vejo as mesmas linhas desenhadas na realidade. Nos lugares onde as pessoas convergem sem nunca se tocarem. Onde se cruzam sem nunca se encontrarem. Há quem dance sem nunca se aproximar, quem se cumprimente sem nunca se ver, quem se encoste sem nunca se enlaçar, quem se empreste sem nunca se envolver, quem fale sem nunca se conhecer… Com diálogos a imitar palavras que não dizem coisa nenhuma.

Oiço as conversas: no ginásio, no trabalho, no cabeleireiro, nos cafés, nos parques. Vejo as palavras que esvoaçam ligeiras como bolas de sabão, que rebentam sem deixarem manchas, nem nódoas na roupa, porque é só sabão, como nas publicidades de lixívia e dos detergentes — “Nem uma nódoa! O algodão não engana!” —, encontros asseados, que não deixam odor, nem marcas, coisa nenhuma. Porque o encontro, quando encontra, marca e engelha. E quando engelha dá um trabalhão a passar a ferro. As marcas dão uma trabalheira a endireitar, a consertar. E as palavras quando não estão vazias têm peso e podem vincar os tecidos: podem enganar o algodão, podem romper o veludo, o linho, as linhas... Podem rasgar os tecidos das células, da pele, como um corte de papel, fininho e incisivo. Podem até acordar o bicho-carpinteiro, e despertar as coisas que acontecem dentro do organismo e fazem cócegas dentro do corpo. (Sobretudo se o encontro acontecer quando estamos distraídos, e por vezes só acontece porque estamos distraídos.)

Todas as manhãs em que atravesso o tabuleiro da ponte sobre o Tejo, vejo pessoas que se movem ligeiras como o Vincent Cassel, a avançar a toda a velocidade enquanto se desviam umas das outras, ágeis, à tangente, sem pisar as linhas na berma, sem tocar nos rails de proteção. Até que às vezes se distraem. E quando se distraem. Pumba! Encontram-se! Encontram-se radicalmente, inesperadamente! Encontram-se brutalmente umas com as outras. Encontram-se com tanta força que a chapa dos carros fica completamente amolgada, o dia amolgado, a estrada cortada, o reboque a caminho. Pessoas em rota de colisão.

Pergunto-me sempre se não terão chocado só para se tocarem? Se terão mudado repentinamente de faixa, esquecido do pisca, confundido a prioridade, só para poderem ir umas contra as outras? Só para entrarem em colisão. E para poderem finalmente sentir o prazer tátil das terminações nervosas da pele sobre a matéria. Para poderem ter um encontro forçado, no meio de tanto desencontro. Sempre me pareceu curioso que nos referíssemos aos pequenos embates rodoviários como tocadelas ternurentas. “Ah! Foi só um toque…”, “Foi só um beijinho!”, “(!) um beijinho??? Um beijinho pode fazer tanta mossa…. No caso dos carros há um seguro, a cobrir o custo do acidente, a reparar os danos. No caso das pessoas que embatem umas com as outras, corpo a corpo, não há seguro nenhum. Um beijinho pode engelhar a roupar toda. Pode rasgar. Sem anestesia. E às vezes lá se vai a suspensão, os travões, o motor, a centralina. O corpo desmontado com a força do impacto. Às vezes é preciso trocar as peças.

Depois de chocarem os condutores vestem aqueles coletes refletores no meio da ponte e ficam ali como se fossem umas peças modernas de arte pop fluorescentes, de um museu de arte contemporânea: “Olhem só para mim! Tive um acidente! Uma colisão! Um encontro! Estava distraído!” Dá-me uma vontade tremenda de sair do carro e ir lá espreitar melhor… com a ponta dos dedos. Mas sigo o meu trajeto. Sem tocar. Maldito bicho-carpinteiro.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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