Racionalidade, eutanásia e o pedido de inconstitucionalidade da provedora de Justiça

Ao colocarmo-nos no lugar daquele que irá morrer, que sofre e nos pede ajuda, não pode vingar a nossa cosmovisão. É o apelo do outro que nos obriga a agir. E neste caso, agir é legislar.

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Foi com algum espanto que, passados já tantos meses da aprovação da Lei n.º 22/2023, de 25 de maio, vimos aparecer um pedido de declaração de inconstitucionalidade por parte da senhora provedora de Justiça.

Lido o requerimento, divulgado no site da provedoria, percebe-se que a demora se deveu, com certeza, a um aturado trabalho de direito comparado que fornece, no entendimento da provedora, argumentos jurídicos que permitem analisar de outra forma o caso português. Sem deixar de notar o complicado artifício jurídico por que terá de passar o doente que se proponha optar pela morte medicamente assistida, e que já aqui tínhamos notado criticamente, estabelece-se uma diferença entre leis que procedem à descriminalização, sem especificar o modo como se procede à morte medicamente assistida e ao suicídio assistido, e outras, como a legislação portuguesa e espanhola, em que o próprio Estado cria um “procedimento administrativo-autorizativo”.

Ou seja, a lei não se refere apenas à alteração do Código Penal, expressando os casos em que não poderá ser crime a ajuda a morrer, mas estabelece um procedimento administrativo (que ainda não está regulamentado) porque a opção do legislador foi deixar apenas na esfera do Estado esta possibilidade. Sabemos que em outras legislações tal não foi a opção, sendo a Suíça a mais conhecida. Assim, dirá a provedora de Justiça, dá um passo “raro” no direito comparado.

E aqui, parece-nos, está o primeiro problema do requerimento. De facto, é normal e natural que, em termos de direito, se procure no direito comparado algumas fórmulas ou almofadas jurídicas que possam fortalecer os argumentos. No entanto, tal procura não é uma questão de justiça mas de prática legislativa/interpretativa que não se pode considerar fundamental, sobretudo em situações novas em termos legislativos. Acresce o facto, não negligenciável no direito e na justiça, de o próprio contexto sociopolítico poder exigir da legislação outro tipo de respostas que não aquela que, noutros países, é instituída. Ainda considerando que a Lei n.º 22/2023, de 25 de maio foi uma lei mal feita, resultado, como diz a provedora de uma “odisseia legislativa”, ou, no nosso entender, de uma excessiva complacência com garantias que não as do sujeito da lei, como acontece, outra vez, no requerimento apresentado (como veremos um pouco mais à frente).

Por outro lado, seria um bom exercício fazer uma comparação com todas as legislações, como aliás o Parlamento fez (ainda que imperfeita e já desactualizada), não com o pressuposto de encontrar as causas de uma inconstitucionalidade não existente, mas de como tornar a legislação portuguesa mais clara, forte, e, sobretudo, respondendo às verdadeiras questões que este tipo de legislação quer responder: ao sofrimento desnecessário de uma pessoa a que o Estado obriga a viver.

Assim chegamos ao segundo erro da provedora de Justiça: ao considerar que, dado o Estado não estar a conseguir prover cuidados paliativos em geral, e sendo esses cuidados paliativos exigíveis nos casos de pedidos de morte medicamente assistida, então não se constitui uma alternativa real, presente e efectiva. Ora, o que deixa, de facto, sem alternativa real, presente e efectiva ao doente é a continuação deste statu quo que coloca, muitas das vezes em cheque a própria medicina. Nestes casos, não há uma medicina virada para a cura, mas para o cuidado, e esse cuidado poderá implicar reconhecer que a morte é a melhor forma de cuidar.

O reconhecimento da finitude, da morte, da dor da morte do outro, não é um fracasso, mas uma forma de cuidar do outro e de nós. Ao colocarmo-nos no lugar do outro, daquele que irá morrer, mas que sofre e nos pede ajuda, não pode vingar a nossa cosmovisão, a nossa forma de ver a morte. Antes é o apelo do outro que nos obriga a agir. E neste caso, agir é legislar. Uns terão a vontade de continuar. Outros de partir. Mas uns e outros têm de ter essa possibilidade.

E isto leva-nos ao último ponto, e provavelmente o mais importante: a dita inviolabilidade da vida. Ao contrário destas posições contrárias à morte medicamente assistida, já há muito que se pondera, em casos éticos e jurídicos, outros valores para além da vida. Dizendo de outro modo: o direito à vida não é um direito absoluto. Se assim fosse, a legislação contra a distanásia seria repelida com a mesma veemência e argumentação. Ao contrário, ao direito à vida deve ser contraposto outro tipo de direitos e de valores. Assim é, atualmente, comum, tribunais superiores sublinharem precisamente que o Estado (ou qualquer Constituição) não podem suportar tal ideia obrigando à dor, ao sofrimento e à desesperança.

Temos esperança que o novo Parlamento possa olhar para esta lei, agilizar processos, ponderar soluções, mas com a rapidez necessária para responder ao apelo do outro, da sua dor e do seu sofrimento. Nunca respondendo ao apelo de uma convicção pessoal.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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