A noite de celebração de Sara Correia nas encruzilhadas do fado

A fadista apresentou-se inteira, desde os fados tradicionais à costela mais pop. Domingo e segunda o Coliseu dos Recreios volta a ser a sua casa, seguindo-se Coliseu do Porto e Teatro de Vila Real.

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Sara Correia no Coliseu dos Recreios, em Lisboa Rita Seixas
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Estamos no fim do concerto. Sara Correia há-de voltar ainda ao palco, para cantar de novo Chelas, o hino pessoal em que reclama a presença do bairro lisboeta onde cresceu como parte fundamental da sua identidade, a peça do seu terceiro álbum, Liberdade, em que a escutamos dar um decidido passo para uma linguagem desavergonhadamente pop. Neste momento, imediatamente anterior, Sara Correia está no centro do Coliseu, na encruzilhada dos corredores que distribuem o público pelos seus lugares na plateia. Canta Fado português, esse tema pungente de Amália Rodrigues, em que o poema de José Régio (musicado por Alain Oulman) põe o fado a nascer um dia “na amurada dum veleiro / no peito dum marinheiro / que, estando triste, cantava”. E vemos a fadista, mesmo aqui a dois passos, rodeada de quem veio escutá-la, de olhos fechados, fechada sobre si, numa das mais belas e intensas interpretações da noite. Nos derradeiros compassos, coreografia desenhada ao milímetro, os três músicos vindos de outros tantos pontos da sala juntar-se-lhe-iam no centro do Coliseu. É justa a ovação desmedida que se segue.

E é também curioso que seja nesta encruzilhada que a vemos. Esse momento (quase) final, que ficará na memória de quem se deslocou ao Coliseu dos Recreios para a primeira de três noites na sala lisboeta (seguem-se Porto a 22 e Vila Real a 23), lembra-nos o quanto o concerto de Sara Correia passa por diferentes zonas, trabalhadas como distintos actos de uma peça de teatro, seguindo um admirável guião de espectáculo, em que reportório, cenário e desenho de luzes propõem um caminho definido – mas não sem os seus altos e baixos. E encruzilhada porque este lugar de fados tradicionais, canções com perfil fadista e outras já que se acercam da pop, com arranjos mais ou menos certeiros, faz de Sara Correia um caso particular na música portuguesa. Apresenta-se em palco, por isso, dizendo-se “inteiramente eu”. “Aprendi que sou muito mais feliz sem preconceitos, sem vergonha nenhuma”, partilha com o seu público. E, também aqui, é justo que assim se apresente, tão autêntica a cantar tradicionais, marchas ou Chelas, a tal canção rasante à pop sob a influência do hip-hop.

Só que nem todos os actos do concerto entregam a sua música com o mesmo impacto. O primeiro segmento, em que lhe ouvimos Porquê do fado, Tu ganhas sempre, Não se demore e Agora o tempo, é um exemplo cabal de um fado em que Sara Correia vem deixando a sua marca pessoal, boas composições, interpretadas com excelência, mas em que os arranjos se deixam armadilhar por uma bateria que resulta quando se apresenta mais minimalista e os boicota sempre que adopta um acompanhamento igual a qualquer outra canção pop – vulgarizando canções que não o mereciam. Até porque a exímia parceria entre a guitarra portuguesa de Ângelo Freire e a viola de Diogo Clemente tem balanço que chegue, e os efeitos que Freire aplica na guitarra são muito mais audazes e eficientes do que as percussões.

O brilhantismo chegaria em dose mais concentrada numa cuidada sequência em que Sara Correia dialogava com as sombras que nas suas costas se projectavam (duetos com Maria da Nazaré, Freire e Clemente). Foi enorme o Tu não me digas com Maria da Nazaré num perfil recortado atrás da fadista, foi sublime a voz e guitarra em Balada de Outono (a fadista no encalço de José Afonso, Freire na pista de Carlos Paredes), foi magnética a partilha com Diogo Clemente de Eu já não sei quase em viola bossa nova. Dando seguimento à melhor sequência do espectáculo, viriam depois, em ambiente de casa de fados, Sou a casa, Bocas do mundo, majestoso meio caminho entre fado e flamenco em dueto com Israel Fernández, e Liberdade, arrepiante Fado Cravo que, num primoroso desenho de luzes, colocaria os músicos por detrás das barras de uma prisão da qual Sara Correia havia de soltar-se. Estranho foi que em véspera de eleições, a pouco mais de um mês do 50.º aniversário do 25 de Abril e em apresentação de um álbum chamado Liberdade, nem uma palavra se lhe ouvisse sobre o assunto. É que a celebração da liberdade individual não deveria dispensar a celebração da liberdade colectiva – sem a qual a primeira não seria possível.

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Depois viria um cenário com a silhueta de Chelas em fundo, para o tema com o nome do bairro, Era um adeus, uma declaração de amor artística e fraternal a Diogo Clemente, Marcha da perdição, Madrugou e a versão de Variações Quero é viver. Bons temas, traídos, aqui e ali, por arranjos mais talhados para a festa e menos para a partilha íntima – regressada com a sentida e notável homenagem a Amália com Estranha forma de vida e Fado português. Foi uma noite bonita e de celebração para Sara Correia, de um fado que quer ser muita coisa e que, nos seus melhores momentos, consegue sê-lo.

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