Ajudar Gaza, taxar bilionários, atirar a Trump: Biden fez prova de vida no Estado da União

Presidente democrata mostrou-se combativo no discurso do Estado da União, abandonando o teleponto para reagir a uma provocação de Marjorie Taylor Greene.

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Joe Biden discursa no Congresso. Atrás, Kamala Harris e Mike Johnson EPA/SHAWN THEW / POOL
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Joe Biden tinha pela frente uma difícil lista de tarefas ao iniciar o discurso anual do Estado da Nação, na madrugada de quinta para sexta-feira, em Washington: exibir vigor quando se avolumam as dúvidas sobre as suas aptidões físicas e mentais; sublinhar o bom desempenho geral da economia sem ignorar as preocupações diárias dos norte-americanos; responder às críticas ao apoio a Israel sem alienar outros sectores do seu eleitorado. Em crise de popularidade, o Presidente dos Estados Unidos e recandidato à Casa Branca sabia que tinha na ida ao Congresso um momento magno para dissipar dúvidas e reposicionar-se perante o eleitorado.

Em grande medida, e para gáudio dos democratas presentes no Congresso, Biden conseguiu fazê-lo ao longo de uma hora pontuada por ataques mordazes aos republicanos, apontando-lhes contradições e inacção em dossiers que lhes são caros, como a imigração, e respondendo directamente a provocações, pausando por vezes o teleponto. Se o discurso desta noite terá algum efeito na sua taxa de aprovação e nas sondagens para as presidenciais de Novembro, em que Donald Trump tem surgido na frente, tal permanece por ver. Mas Biden alcançou alguns dos pontos de equilíbrio exigidos.

Sobre o conflito no Médio Oriente, o Presidente democrata reafirmou o apoio norte-americano a Israel, recordando o seu “direito de defesa” na sequência dos ataques de 7 de Outubro, "o dia mais mortífero para o povo judeu desde o Holocausto", mas criticou a resposta do aliado em Gaza, apelando à implementação do “cessar-fogo de seis semanas” que vem sendo negociado. E instou Israel a levantar obstáculos ao auxílio à população palestiniana: “À liderança israelita digo que a assistência humanitária não pode ser uma preocupação secundária nem uma moeda de troca. Proteger e salvar vidas inocentes tem de ser a prioridade”, afirmou, reiterando ainda a “solução dois estados” como “a única” para o conflito.

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As congressistas democratas Rashida Tlaib, Cori Bush e Summer Lee colocaram o tradicional lenço árabe - o keffiyeh, símbolo palestiniano - para sinalizar o apoio a Gaza REUTERS/Evelyn Hockstein

Como tinha sido noticiado horas antes, Biden confirmou um plano norte-americano para colocar uma “doca temporária” ao largo de Gaza que permita a entrada célere e em massa de ajuda humanitária naquele território palestiniano. Mas, realçou, “sem tropas americanas no terreno”.

Segundo o jornal israelita Haaretz e o site norte-americano Axios noticiaram ainda na quinta-feira, o plano envolverá o Chipre como plataforma de trânsito da ajuda humanitária (cenário aludido já pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen) e as Nações Unidas e outras organizações humanitárias ficarão encarregues da distribuição do auxílio em Gaza. A operação terá já o acordo de Israel.

'A História observa-nos'

Ainda na frente externa, Biden tinha arrancado o discurso com críticas às declarações de Donald Trump, que disse que desafiará a Rússia a atacar países membros da NATO que não cumpram as metas de gastos com a defesa - "é revoltante, perigoso e inaceitável", disse o democrata - e reiterou o apoio à Ucrânia - "não nos vamos embora".

"Se os Estados Unidos desmobilizarem agora, a Ucrânia ficará em risco. A Europa ficará em risco. O mundo livre ficará em risco", disse, repetindo que "a História observa-nos".

Daí partiu para outro ataque directo ao trumpismo: "A História observa-nos, tal como nos observou há três anos a 6 de Janeiro. Insurrectos invadiram o Capitólio e colocaram um punhal junto à garganta da democracia americana. (...) Vieram para travar a transferência pacífica do poder e reverter a vontade do povo. O 6 de Janeiro e as mentiras sobre as eleições de 2020, e as tentativas de roubar a eleição, foram as mais graves ameaças à nossa democracia desde a Guerra Civil."

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"Não se pode amar o país só quando se ganha", declarou numa de várias referências ao "antecessor", que recusou nomear no discurso.

A provocação de Greene

Ataque directo também no capítulo do aborto, com o democrata a prometer repor Roe v. Wade (congressistas, senadoras e convidadas democratas voltaram a vestir-se de branco, em defesa dos direitos reprodutivos), e no da imigração, com Biden a condenar o bloqueio republicano a uma ampla reforma legal e a responder directamente a uma provocação da congressista republicana Marjorie Taylor Greene, uma das mais radicais aliadas de Trump no Congresso.

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"Diz o nome dela", Greene tinha desafiado o Presidente à entrada do Congresso, vestida de vermelho e com um boné Make America Great Again. "Ela" era Laken Riley, uma jovem estudante de enfermagem vítima de homicídio. O presumível autor, já detido e a aguardar julgamento, é um cidadão venezuelano que entrou ilegalmente nos Estados Unidos. O momento fora criado para produzir um vídeo viral (Greene enfrentou Biden de telemóvel na mão, com a câmara ligada) e colar o Presidente ao problema da imigração ilegal, que os republicanos associam a uma subida de criminalidade.

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Biden não lhe respondeu de imediato mas fê-lo mais tarde, durante o discurso, quando Greene voltou a interrompê-lo com um novo "diz o nome dela". O democrata surpreendeu e respondeu - "Laken Riley, uma mulher que foi morta por um ilegal", disse, utilizando um termo proscrito pelos democratas - e dirigiu-se aos familiares da vítima, na galeria dos convidados, argumentando depois que a reforma da imigração bloqueada pelos republicanos iria dissuadir o atravessamento irregular das fronteiras ao acelerar, através de reforço de meios humanos e financeiros, o processamento e expulsão dos infractores.

Indicadores económicos vs. sondagens

No capítulo fiscal, Biden recuperou a defesa de uma taxa mínima de 25% para bilionários, que actualmente pagam apenas 8,2% de impostos sobre os seus rendimentos. "Isso reuniria 500 mil milhões de dólares em 10 anos. Imaginem o que é que isso podia fazer pela América. Imaginem um futuro com creches acessíveis em que milhões de famílias pudessem ir trabalhar e fazer crescer a economia. Imaginem um futuro com baixas pagas em que ninguém tivesse de escolher entre trabalhar e cuidar de si próprio ou de um familiar", disse, contrastando com a redução de impostos nos escalões mais elevados promovida pelo "antecessor".

Na frente económica, onde tem sido penalizado nas sondagens, Biden elencou indicadores positivos: "15 milhões de novos postos de trabalho em três anos, um recorde. O desemprego em mínimos de 50 anos. Um recorde de 16 milhões de americanos a iniciar os seus negócios. (...) A disparidade racial na riqueza é a menor em 20 anos. A inflação caiu de 9% para 3%, a menor no mundo."

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Apesar destes números, e de acordo com uma sondagem recente do Siena College para o New York Times, apenas 26% dos inquiridos consideram que a economia norte-americana está em “bom” ou “excelente” estado, e a maioria (51%) qualifica-a como “má”.

A subida dos custos da habitação (particularmente no mercado de arrendamento) e o aumento do preço de vários bens alimentares, não inteiramente reflectido no valor oficial da inflação, são dois dos focos de maior insatisfação económica. Na habitação, Biden prometeu ir atrás dos grandes senhorios que manipulam preços e inflacionam rendas, instou o Congresso a aprovar a renovação e construção de dois milhões de casas a custo acessível, defendeu a retirada de barreiras burocráticas à construção e ofereceu benefícios fiscais a novos proprietários. Na alimentação e noutros bens essenciais, o Presidente norte-americano elencou medidas contra a manipulação de preços. Num e noutro ponto, o discurso arrisca ter ficado aquém daquilo que as sondagens indicam ser as preocupações dos norte-americanos.

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