As Alines mediáticas e o PCP

Que uma coisa pensa o cavalo outra quem está a montá-lo Alexandre O’Neill

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A Professora Doutora Aline Hall de Beuvink, da Universidade Autónoma de Lisboa, afirmou em finais de 2022 que o Partido Comunista Português não deveria existir. Recordo que esse foi o ano em que todos os partidos e a maioria dos comentadores políticos em Portugal se uniram para colarem o PCP à invasão da Ucrânia pela Rússia, beneficiando da atmosfera não imediatista instalada nas fileiras do partido, ao procurar, aí, enquadrar o facto num debate cuja dimensão alargada parecia estar ausente e a escapar aos mais variados quadrantes.

De facto, o PCP não só não se distanciou da sua posição inicial, como estimulou o debate, introduzindo na sua análise a projecção espacial, histórica, política, geoestratégica, formulações conjuntas frequentemente desvalorizadas ou dificilmente apreendidas pelos analistas. Decorridos dois anos, tendo dado o corpo a todas as balas, injuriado até ao último homem, o PCP ensinou que a metáfora do telescópio invertido aplicada aos exames sociais e políticos nem sempre resulta num método infalível.

Hoje, boa parte dessa categoria mediática a que chamamos comentário político percebeu que as ideias influenciadas pela propaganda dominante facilmente perdem todo o sentido de verdade e que as identidades fictícias geradas no seio de um consenso estão mais inclinadas a legitimar uma verdade parcial e a enunciar mentiras.

O ataque ao PCP é, em boa franja da sociedade portuguesa, um apelo irresistível. Clara Ferreira Alves, por exemplo, desenvolveu de forma absolutamente extraordinária a habilidade de embalar prendas anticomunistas, desde o tempo em que levou Mário Soares ao colo, num programa televisivo sumamente aborrecido e em que a trivialidade do convidado era mais notória do que disfarçada. Recordo-me ainda de mais umas infelizes intervenções combinadas desta jornalista, mais preocupada com a morte do PCP do que com a imortalidade dos seus ideais. De há uns tempos para cá, pareceu-me lê-la na perspectiva de quem nutre pouca simpatia pelo sistema capitalista, ainda que isso me pareça, nela, algo de deslocado. Enquanto recupera da emoção do “rapaz da distribuição da comida”, como lhe chamou, produzirá, num outro lugar qualquer, a maior das invectivas contra o único partido verdadeiramente preocupado em tirar as pessoas da pobreza e dotá-las da dignidade que todas, sem excepção, merecem.

O papel de vanguarda da intelligentsia nacional, há já muito subtraída à esquerda política, desempenha um papel crucial no aparecimento dos novos nacionalismos populistas de direita, para os quais reservou uma visão política contemporizadora, alertando vagamente para os seus perigos, enquanto tratou de isolar os verdadeiros movimentos democráticos.

Ao PCP podem assacar tudo, menos ter estado ao lado das vítimas de todo o tipo de exploração laboral, social e económica, e de ter sido a única organização partidária capaz de ter enfrentado, não apenas para benefício próprio, um regime facínora de 48 anos de práticas repressivas. O exército de mercenários mediáticos, a seita das Alines da SIC, da TVI, da CNN ou da RTP, para que há-de incomodar-se com o movimento da sua consciência, se pode destilar calúnias e debochar contra “Uscumunistas” (para usar a ironia de O’Neill​) tão magnificamente numa cadeira de um estúdio televisivo, a pretexto do economicismo e da sedução neoliberal?

Há dias, num jantar em Portalegre com a presença de João Oliveira, testemunhei, mais uma vez o optimismo generoso dos comunistas, o estímulo à aceitação de opiniões distintas, invariavelmente encerradas em falsos chavões e a que se considera necessário dar um outro lenitivo da razão; e, sobretudo, comprovei, de novo, como os comunistas não inventaram a empatia, porque lhe chamavam já solidariedade, fraternidade e camaradagem.

Independentemente do que possa ser conseguido no dia 10 de Março (e seria bom que este texto entrasse antes), gostaria de recordar o tamanho incomensurável de ingratidão para com o Partido que há mais de cem anos lutou, com sacrifícios inauditos, pelos interesses do povo português.

A ideia simplificada de que o PCP não deveria existir, que poderíamos estender à Igreja Católica, ao SNS, ao Ensino Público, à Segurança Social, tem procurado germinar onde não encontra resistência, isto é, onde a ignorância e a insolência encontram terreno fértil. Neste momento, não é a presença do partido Chega que me assusta: é, antes, o deserto de ideias e de sentimentos solidários que me preocupa, extensível a toda a direita portuguesa, A incontrariável pulverização da irmandade do humanismo, da fé e da ideologia.

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