As dores de crescimento de André Ventura

O que esta campanha está a demonstrar é o quão difícil é liderar um partido sem uma linha programática consistente e sem vestígios de uma ideologia sólida.

Ouça este artigo
00:00
03:15

Em 2019 eu estava convencido de que André Ventura não acreditava em quase nada do que dizia e cinco anos depois ainda não mudei de opinião. O Chega nunca foi um projecto ideológico, mas sim um projecto de poder pessoal. Ventura fundou um partido de direita radical simplesmente porque esse era o nicho de mercado político que estava disponível para ascender ao estrelato e ao poder.

Ele tentou dar nas vistas a comentar casos de Justiça; tentou dar nas vistas como escritor de romances-choque – o primeiro, de 2008, intitulava-se Montenegro e o seu protagonista era um ciclista com sida chamado Luís Montenegro (não estou a gozar); tentou (e conseguiu) dar nas vistas como comentador de futebol; escreveu inclusivamente outro livro com a taróloga Maya, intitulado 50 Razões para Mudar para o Sport Lisboa e Benfica; tentou também dar nas vistas como candidato à Câmara de Loures pelo PSD.

Se pensarmos que aos 30 anos Ventura estava doutorado, era professor universitário e especialista em Direito Fiscal, e que por isso tinha a vida mais do que garantida, aquele espantoso frenesim de actividades, muitas delas claramente abaixo do seu QI, só se explica por um desejo intenso de viver debaixo dos holofotes. Freud explicará porquê, mas o que esta campanha está a demonstrar é o quão difícil é liderar um partido sem uma linha programática consistente e sem vestígios de uma ideologia sólida.

O Chega começou por ser hiperliberal em 2019; assumiu pouco depois que era necessária uma “clarificação em sentido inverso”; foi avançando num caminho cada vez mais estatista; para acabar a ser acusado de “socialista” nos debates eleitorais. Querer ser tudo ao mesmo tempo para tentar chegar a todas as almas insatisfeitas do país, como Ventura manifestamente quer, é uma tarefa muito difícil de sustentar com o passar do tempo, porque se incorre em imensas contradições, sobretudo naqueles momentos em que já não basta dizer mal de tudo e é necessário propor alguma coisa.

Se durante cinco longos anos bastou a Ventura dizer coisas desagradáveis sobre ciganos, pedófilos e imigrantes para o Chega crescer, parece-me cada vez mais evidente que esse discurso começa a ser curto para as suas ambições. É preciso mais. Só que esse “mais”, se existe, ainda não se viu. Por um lado, nesta campanha o Chega deixou de falar de ciganos e de pedófilos, para se tornar mais palatável e alargar o eleitorado; por outro, percebe que, quando abandona as palavras-choque, as câmaras afastam-se; para se voltarem a aproximar, resolve chamar “prostituta política” ao PSD ou apelar ao uso de roupa interior com a bandeira de Portugal; mas já quando Paulo Núncio manifesta o seu desejo de voltar a referendar o aborto diz, muito ponderado, que nem pensar (o mesmo Ventura, já agora, que em 2019 dizia que “o dinheiro dos contribuintes” não podia “ser gasto em leviandades como o aborto”). Quando o dia das eleições se aproxima, decide levantar suspeitas sobre a transparência do processo eleitoral, acerca do qual ninguém tem dúvidas de legitimidade desde 1975. É uma enorme confusão.

Toda a gente sabe que o Chega vai crescer no domingo. Mas parece cada vez mais certo que não vai crescer tanto quanto se esperava. Há um dilema que Ventura ainda não resolveu: passado o choque do homem que fala grosso e diz alarvidades, o que é que realmente ele tem para oferecer ao país? A esmagadora maioria dos portugueses ainda não sabe. Desconfio que André Ventura também não.

O autor é colunista do PÚBLICO

Sugerir correcção
Ler 86 comentários