O esplendor da arte rupestre

Depois de exposições em Berlim, Dacar, México, Zurique e Frankfurt, os comissários de Préhistomania, Trésors mondiaux de l’art rupestre desejam trazê-la ao Museu do Côa.

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Obra de Graça Morais da série Maria (1982) integra a exposição no Museu do Homem, em Paris Colecção da Artista
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​Comissariada por Jean-Louis Georget e Egídia Souto, ambos professores em Sorbonne Nouvelle, e ainda Richard Kuba, investigador e conservador das colecções do Instituto Frobenius da Universidade de Frankfurt, a exposição Préhistomania, Trésors mondiaux de l’art rupestre. De la grotte au musée irá ocupar até 20 de Maio o espaço de exposições temporárias do Museu do Homem, em Paris.

Como explicam os comissários na entrevista que concederam à revista Beaux Arts, esta exposição exibe um duplo salvamento. Em primeiro lugar, das pinturas copiadas do natural, em escala real e com rigor técnico-artístico, nomeadamente em relação à cor e à sobreposição das representações. Em segundo lugar, do trabalho realizado pelas equipas de Leo Frobenius que, depois de uma entusiasta recepção, caiu no esquecimento, por se tratar de cópias, consideradas menores numa época de culto dos objectos únicos.

No nosso tempo, pelo contrário, a documentação tornou-se central na investigação museológica e, também por isso, esta exposição é inovadora e prospectiva. No entanto, não se pense que é uma exposição para ler: com eficácia, os comissários encheram as paredes das primeiras salas com grandes pinturas que nos mergulham num mar de emoções, relacionadas com o contacto directo com práticas artísticas que nos permanecem misteriosas. Pouco sabemos de quem as fez e por que as fez, mas elas exaltam o lugar da arte e dos seus mais fundos simbolismos no longo processo de nos tornarmos humanidade.

Sob este aspecto, a exposição amplia exponencialmente a geografia da arte rupestre: além da Europa (região franco-cantábrica, Itália e Noruega), distintas regiões de África (África do Sul, Lesoto, Zimbabwe, Chade, África do Norte, entre a Algéria e o Egipto ao longo do Sara então verdejante), Indonésia e Papuásia até à Austrália. Como realçam os comissários, “a arte rupestre é a forma de expressão artística que conheceu maior popularidade e longevidade em todo o mundo, existindo sem interrupção desde há 40.000 anos”.

Entre os conjuntos expostos, alguns são testemunhos únicos dos originais que desapareceram ou estão muito degradados, outros foram depois, e continuam a ser, intervencionados por comunidades que os consideram património religioso activo, como acontece com os aborígenes da Austrália. Há também uma sólida abordagem dos registos actualmente usados, com recurso a meios fotográficos e informáticos que permitem, além da preservação dos originais, um rigor de recolha muito superior aos usados pelos artistas, arqueólogos, etnólogos ou empresários aventurosos que são evocados ao longo da exposição.

As pinturas mais impressionantes pertencem à Colecção Frobenius. Desde 1913, este curioso etnólogo alemão organizou dezasseis expedições, recrutando para o efeito artistas formados em escolas de Belas-Artes que trabalharam com enorme motivação e em condições duríssimas. Eram equipas mistas, com mais mulheres do que homens, e a documentação apresentada, através de fotografias e pequenos filmes, constitui componente fundamental da exposição, valorizando o trabalho conjunto desses artistas-cientistas em que se fundem marcas autorais dos objectos primeiros e dos seus recriadores.

A diversidade destes testemunhos continua hoje a ser estudada, restaurada e divulgada pelo Instituto Frobenius. Às pinturas deste imenso acervo, o Museu do Homem juntou as suas próprias colecções, oriundas do trabalho pioneiro de Abbé Breuil, e das recolhas africanas de Henri Lhote e Gérard Bailloud que foram objecto de importante campanha de restauro, exemplificando um caso feliz de articulação entre a investigação académica e projectos museológicos de grande escala.

Outro aspecto relevante da exposição é o destaque dado à divulgação internacional, empreendida por Leo Frobenius e pelas suas equipas, através de sucessivas mostras itinerantes, em várias cidades europeias, por vezes acompanhadas com colecções dos museus que as acolheram, como aconteceu com o próprio Museu do Homem, em 1931.

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Relevo de Joachim Lutz durante expedição de Leo Frobenius em 1929 ao Zimbabwe Institut Frobenius

Mas o destaque maior vai para a exposição no MoMA em 1937, onde as cópias foram apresentadas como obras de arte autónomas, que na verdade também o são, abrindo um debate interessante que hoje continua a ser reequacionado. A grande sala onde a exposição do MoMA é evocada exibe também pinturas e esculturas de artistas das vanguardas de 1900, para quem estas “artes primeiras” foram estímulo e confirmação dos seus percursos, chegando a dois artistas vivos, oriundos de geografias periféricas: o senegalês Abdulaye Diallo e a portuguesa Graça Morais, esta com uma das obras da série Maria da década de 1980, oportunidade para a co-comissária Egídia Souto referenciar a importância das gravuras de Foz Côa. A presença portuguesa está ainda presente numa frase de José Saramago: “As pinturas rupestres são poemas visuais gravados na pedra, testemunhando a criatividade inesgotável do espírito humano.”

Depois de exposições em Berlim, Dacar, México, Zurique e Frankfurt, os comissários desejam trazê-la ao Museu do Côa: é um excelente propósito que confirmaria a sua integração numa rede internacional prestigiada, propiciando o confronto entre a diversidade temática das pinturas relevadas e os conjuntos das gravuras do vale do Côa. Em vez de grutas, há um imenso território de fragas e água, mas a arte rupestre mantém os seus caracteres definidores: uma espécie de pulsão do desenho, a centralidade temática dos animais, a sobreposição de tempos numa cronologia alargada, o amplo espectro de valores estéticos constitutivos de significados misteriosos que atraíram sucessivas apropriações e partilhas.

Uma última nota para destacar quanto o Museu do Homem, instalado na Praça do Trocadéro, voltou a ser um museu incontornável na grande oferta parisiense: parecia condenado depois de saída da maior parte das suas colecções, primeiro para o Museu das Artes Primeiras do Quai Branly, e depois para o Mucem – Museu das Civilizações Europeias e do Mediterrâneo em Marselha, mas a sua didáctica e estimulante Galeria da Antropologia, com uma perspectiva aberta ao mundo, atrai actualmente a visita de toda a espécie de públicos. Só falta, na minha perspectiva, naturalmente feminista, que o nome da instituição passe a Museu da Humanidade.

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